Fora da Rede

... agosto 2025

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Txriza estava em seu dormitório tarde da noite, como de costume, navegando na rede. Em seu computador de mesa, inúmeras abas estavam abertas, algumas sobre novos softwares ilegais recém lançados, outras em vídeos virais de gafes políticas, geralmente protagonizados por políticos do império se passando por mocinhos antes de serem confrontados por jornalistas astutos. Estando a meia luz de lanternas improvisadas em um ambiente naturalmente frio, tudo era silêncio quando ela recebeu uma mensagem de seu amigo Lupin “Dá uma olhada nisso:”, dizia a mensagem seguida de uma imagem anexada que revelava um drone imperial, com o seu código de produção riscado, tirando isso o drone parecia novinho. “Puta merda” pensou Tx, “Quando e onde?” escreveu ela, pegando em seguida mais uma batatinha chips, estelares hipersaturados, da embalagem que pendia em seu colo. Enquanto esperava a resposta, ela já pensava nas aplicações do drone em missões de reconhecimento e combate, imaginando como seriam os circuitos e quais seriam as modificações possíveis no aparelho Imperial, ela pesquisou na internet e não encontrou registros do modelo da foto, parecia coisa de primeira linha “Talvez ainda seja um protótipo”, ela divagava no momento em que o celular recebeu uma notificação “Agora a pouco aqui no Setor de Mercadorias. Parece que o império tem contratos, digamos curiosos, com comerciantes locais, mas sabe como é, o Dex conhece um pessoal e conversa vai, conversa vem, descolou essa belezinha pra nossa iniciativa ha ha.”, Tx deu um sorrisinho e se pôs a escrever “Mal vejo as hora de dar uma olhada nesses circuitos da realeza. Vou dar uma passada aí amanhã cedinho.”, “Blz, local de sempre?”, “Pode ser, prepara um café pra mim, terei muito o que estudar >:D”.

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Tx levantou às 5h, pôs suas botas pretas de origem militar, e jogou um sobretudo por cima de sua blusa verde simples e de seu jeans azul surrado, ela não levava mochila pois tudo de que precisava estava em seu celular, ela também tinha implantes em seu braço que a permitiam criar conexões com dispositivos tecnológicos, cortesia da seção de robótica da Resistência, que para além de ajudar pessoas comuns com a aplicação de próteses cibernéticas, também oferecia modelos operacionais para os agentes da iniciativa. Depois de se arrumar, Tx quase se esqueceu de seu fone, o pegando da mesa ao lado da cama rapidamente o colocou ao redor do pescoço, agora estava pronta pra sair. Do lado de fora do dormitório, ela estava focada em fazer o mínimo de barulho possível ao se deslocar pelos longos corredores subterrâneos que constituíam a base da resistência, o centro de operações que atuava pela queda do Império.

Ao chegar perto de uma das saídas que levavam a superfície, uma porta lateral se abriu e Dex apareceu, ele parecia cansado, tinha olheiras fundas mas passava uma aura de confiança absoluta. “Vejo que já está de pé.” ele falou tranquilamente, “Bom dia Dex, eu só vou dar uma saída, coisa rápida.”, respondeu Txriza dando um sorriso casual, “Tx, preciso te mostrar uma coisa, acho que é do seu interesse.” Dex disse sério, ele estava mais soturno do que de costume e com um gesto de mão apontou para dentro da sala onde estava, “Okay, se você diz...” Tx deu de ombros e o seguiu.

Lá dentro a luz vinha do teto, espalhando-se em grandes feixes projetados por uma lâmpada azulada comprida. Na parede diretamente oposta a entrada jazia um telão formado por vários monitores com visão às câmeras da base, ao redor jaziam os fios dos dispositivos do ambiente, Dex puxou a cadeira para o lado e se sentou como se um grande peso estivesse em suas costas, passando a mão pelos olhos ele disse “Pegaram o maldito drone.”, Tx pensou em se fazer de desentendida mas achou melhor não forçar a barra, “O que?!”, “Veja por si mesma.”, Tx olhou para o monitor principal e viu um chat de Dex com Lupin:

“Puta merda cara, não sei como aconteceu, mas perdemos a encomenda.

Entraram no esconderijo enquanto eu estava sozinho, não sei como passaram pela tranca da porta, perguntaram do drone enquanto apontavam uma pistola laser na minha testa, me desculpa Dex mas eu não tive muita opção.”

A mensagem tinha sido enviada às 3:43 da madrugada, e Dex não tinha respondido. “Dex, eu …”, “Escuta Tx, preciso que alguém encontre o drone, e preciso que isso seja feito em sigilo, essa pode ser uma peça fundamental para nossa causa. Como você já parece estar por dentro do ocorrido”, Tx o interrompeu “Olha Dex, eu nunca trabalhei em campo. Sabe melhor do que ninguém que eu lugar é atrás de monitores, hackeando sistemas. Sempre a distância!”, cerrando as mãos enquanto o olhava ela descobrir o que ele estava pensando, não captou nada. Dex passou a mão pelos olhos antes de responder “Olha só Tx, eu não queria estar te colocando nessa posição. Mas você já parecia bem a par da situação até cinco minutos atrás.”, Tx cruzou os braços e deu um longo suspiro, “Se é o que precisa ser feito. Vamos logo com isso.”, Dex assentiu levemente, sua postura ficando um pouco menos encurvada do que antes. Ele disse “Certo, vou pegar uma coisa que pode vir a ser útil.”, terminando de falar, Dex abriu uma gaveta, que antes parecia fazer parte da mesa, e do um compartimento escondido tirou uma magnum de aspecto mecânico industrial, pequena o bastante para passar despercebida sob vestimentas comuns. “Farei o que puder Dex.”, Tx falou usando todo seu esforço para não deixar o nervosismo transparecer em sua voz, enquanto ela sentia o peso da arma sendo entregue em suas mãos, sua cabeça se revirava com o pensamento de que aquele objeto que agora a pertencia, tinha sido criado com o único objetivo de matar outra pessoa.

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Tx andava pelas ruas movimentadas da Cidade Capital usando os fones de ouvido que a isolavam do caos sonoro das avenidas, pontes e escadarias pelas quais passava. Ela ouvia uma balada melancólica de Junko Yagami, e para ela a música era como uma espécie de mantra, sob sua influência, ela conseguia seguir um ritmo próprio, que a conduzia no fluxo magnético da multidão que a rodeava, de vez em quando ela se esbarrava em pessoas, mas estas assim como ela, estavam muito concentradas em seus próprios pensamentos para criar qualquer caso. Tx olhava apreensiva para os cantos naturalmente, já acostumada a prestar atenção ao menor sinal de ameaça, criada desde criança naquela cidade que parecia levar a violência em sua formação arquitetônica. A metrópole, era marcada por vias alternativas e becos que rodeavam os centros comerciais causando confusão a novos passantes, que se perdiam por corredores e escadarias que pareciam ter vida própria, era como se a cidade se manifestasse contra seu mapeamento, uma vez que nem a instalação de placas se fizera de todo útil, pois as mesmas precisavam constantemente ser atualizadas, devida a grande expansão da Cidade, que se deu em decorrência do crescimento populacional, e da incessante abertura de novas lojas e inferninhos perdidos, todas essas coisas formavam um grande labirinto incidental.

Após meia hora de caminhada ansiosa, Tx estava então passando por uma rua menos movimentada, quando foi tomada pela consciência de sua frágil mortalidade, diante de alguma armadilha forjada pelas pessoas que tinham roubado o maldito drone, arduamente adquirido através de contatos estabelecidos em tempos de agitação política. E pensar que aquele ‘simples’ aparelho militar poderia representar um ponto de virada importante para a resistência. Era assustador pensar que essa pequena vitória agora dependia em grande parte dela. Nunca gostará de violência. Sua reputação foi construída em linhas de código, não caçando ladrões. Em seu começo de carreira, Tx passou por todas as competições de programação do submundo que pôde encontrar. Nelas, não era raro deixar no chinelo hackers que batiam no peito por invadir sites de supermercado autônomos ou agentes robôs da polícia. Trabalho de principiante, códigos malfeitos e rastros eletrônicos deixados como se o autor buscasse ser encontrado, coisa de idiota. Nas competições o nível era baixíssimo e se por um lado o dinheiro que ganhava dava para pagar umas contas, por outro era entediante e não mudava em nada o inferno na terra que era a favela da cidade onde cresceu. Do mesmo modo que ela sentia que dava para fazer muito mais do que aquilo, tinha a certeza de que a má qualidade de vida não era algo localizado. Quando ela se deu por si, já era uma rebelde. E seu talento e dedicação a programação logo a levaram a várias das missões da resistência que seguiam um outro paradigma: roubos de documentos operacionais, sabotagens de sistemas da inteligência Imperial e desvios de dinheiro para ajudar aqueles que estavam cansados de viver de cabeça baixa, sempre trabalhando até altas horas, para no fim do expediente ainda correrem o risco de serem espancados na rua por estar ‘vadiando’. A falta de sono, os potes de macarrão instantâneo que formavam montes na pia, dias e dias de luta para enriquecer os mesmos ricos de sempre. Não dava pra continuar assim. Por isso seguiu na resistência apesar de todos os riscos envolvidos. Lá ela sentia que era parte de algo maior, um outro futuro com mais liberdade. Ela deu um sorriso ao notar como após três anos, esse algo poderia ser traduzido também como família. Ela seguia lutando sempre atrás dos bastidores, com sangue nos olhos, mas através do teclado e mouse. Esse era o seu mundo até aquele roubo do drone… aquilo havia mudado tudo. Nada de códigos, criptografias ou ataques a sistemas governamentais usando memes de gatinhos, agora ela estava atuando na Cidade Capital, uma metrópole onde os únicos elementos digitais eram os hologramas de propagandas e acessórios de moda. Usando certas substâncias era possível visitar lugares secretos pelas vielas, enxergando cores estelares e vendo seres de outros mundos, apesar disso, por trás dessas fachadas a realidade não poderia ser mais palpável: as pessoas seguiam sendo de carne e osso. E balas e feridas não eram elementos de um jogo apostado de fim de noite, mas sim , viagens sem volta.

Tx seguia andando pelas ruelas, tentando não chamar muito atenção, ela era só mais uma naquela cidade que parecia uma extensão da opressão. Uma metrópole já acostumada a moer aqueles que não seguiam as regras impostas por uma ditadura que já valia a tempo demais, lembrar disso fez Tx ficar menos incerta sobre ter aceitado aquela missão. Apesar disso, longe das luzes neon de seu quarto, ela não seguia confiante de seu caminho, e como num loop, ela seguia rápido e fazendo caretas ao passar pelos containers de lixo deixados ao ar livre.

Entrando em uma viela lateral, ela estava prestes a descer para a estação de metrô que a levaria para o ponto de encontro onde tinha marcado com Lupin antes da merda toda acontecer. Atenta e já sem os fones, num átimo de segundo um estrondo atingiu seus ouvidos, estilhaçando o silêncio intrincado que pairava no ar, olhando rapidamente para a origem do barulho viu uma lata de lixo caída, e de dentro dela um rato gigante surgiu, com presas afiadas, uma pelagem de aspecto mofado e uma feição que desafiava a natureza, o roedor se distorcia e tremia em ondas de ameaça, sua agressividade reforçada pelos maliciosos olhos que a encaravam com uma raiva primitiva. Tx puxou sua magnum enquanto a criatura partia em disparada, e assim que ela soltou a trava do gatilho, BANG!!! O rato foi atingido na cabeça, que agora se espatifava em montes de massa disforme e sangue pelo piso empoeirado, enquanto o restante do corpo se deixava cair em descompasso, as pernas se atropelando como um brinquedo quebrado. Tx surpresa olhou para trás apontando a arma para a cabeça de quem quer que fosse, porém sua mão trémula recuou quando reconheceu o rosto amigo, soltando a respiração suspirou de alívio, era Troiner, um companheiro da iniciativa, ele segurava uma pistola laser preta, e a pôs na coronha dando um sorrisinho, “Puta merda, Troi! Que susto que você me deu!” Tx dizia enquanto guardava a arma e balançava as mãos numa tentativa de afastar a onda de adrenalina que a atingia, “Melhor ganhar um susto que perder uma perna, esses desgraçados ficam na espreita esperando um desavisado, ou um cabeça de vento corajoso o bastante para se arriscar por essas bandas”, “Okay, okay foi má ideia vir por aqui, porém tenho ordens urgentes e aqui é a passagem por onde chegarei onde preciso com a menor chance de atrair atenção, doutor sabe-tudo.” Tx mostrou a língua em zombaria amigável, “Ha ha, também senti saudade, Tx. Aliás, sei bem da sua missão, o chefe me mandou sair da minha zona de vigia pra dar uma mão.”, “Ótimo! Finalmente tenho alguém pra terceirizar a reação violenta caso necessário! Vamos nessa.” No curto momento antes de descerem para a estação um misto de animosidade e entendimento se fez presente, naquele dia tal reencontro era uma das coisa mais inesperadas que poderia acontecer, mas o mesmo já tinha provado que um padrão a ser mantido seria o das surpresas.

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Desceram as escadarias solitárias que guiavam uma descida ao subterrâneo da grande Capital, e ao chegarem no final se viram num ambiente insalubre, escuro e corroído pelas centenas de anos que marcavam a origem daquela grande instalação. Destinado à população, o metrô conectava os polos comerciais aos habitacionais em um complexo sistema que para leigos pareceria uma centena de fios embaraçados, não era esse o caso de Tx e Troi, uma vez que o sistema era seu principal meio de locomoção. Baseado na análise do percurso Tx optará por aquela estação, que se localizava fora do eixo principal, de modo que ela se encontrava mais vazia àquele horário. “Certo Troi, já que está aqui, acho que devemos bolar um plano de ação.” Tx falou enquanto usavam cartões para pagar as passagens numa máquina automatizada, “Nesse caso, creio que devemos entrar pelos fundos e passar despercebidos, roubando o drone debaixo do nariz deles e dando o fora antes que sintam falta do robô.” A cadência de Troi era monótona e enquanto ele falava escrevia coisas em seu celular, “Uau! Que plano mais inovador, tenho certeza de que eles NUNCA pensariam nisso.” Tx tinha cruzado os braços e parecia preocupada, assim que Troi ia responder, as luzes do metrô se tornaram visíveis. Quando o veículo parou e abriu as portas, Troi deu dois toques na cabeça e acenou para Tx.

No vagão, encontraram vários lugares vazios, porém o mesmo não estava livre de passageiros, a partir desse momento passaram a usar a consciência, iniciando uma comunicação por telepatia, “Tirando seu ar de superioridade mesquinho Tx, eu até concordaria com sua crítica, mas eu tenho duas cartas na manga que serão úteis na nossa infiltração.” ao terminar de falar ele puxou do bolso o cartão do metrô, e com um toque usando sua digital, ele se transformou em um cartão esverdeado, instantaneamente reconhecível, Tx arregalou os olhos e abriu a boca em surpresa, para em seguida a cobrir desviando os olhos despreocupadamente, “Como você conseguiu isso?? Não é todo dia que se vê um passe da elite.” “Uma das vantagens do meu posto de observação, é a demanda por fazer presença em ambientes exclusivos. Casas de festas com as melhores bebidas e as piores companhias possíveis, jardins biônicos revitalizantes e restaurantes onde um mero aperitivo cobriria um mês de despesas de um cidadão comum. Obviamente é nesses lugares onde os maiores absurdos são falados, e é meu trabalho filtrar a merda inútil daquela que posso usar como fertilizante.”, Tx franziu o cenho e pensou em quão ruim Troi era com metáforas, mas entendeu a ideia e preferiu não comentar nada a respeito, ela apenas respondeu “Bem, vou deixar você abrir passagem, só me pergunto como vamos achar esses caras, acho que o melhor a fazer é ir no esconderijo onde Lupin estava, devem ter deixado algum rastro.”, Troi acenou tranquilamente, era a primeira vez no dia em que concordavam sobre algo, era pequena, mas já era uma vitória.

Precisavam descer no Setor Arborífico, exclusivo de poucos felizardos, herdeiros, donos de empresas e um número ínfimo de pessoas comuns que mataram leões atrás de leões para chegarem em tal nível de privilégio social. Enquanto não chegavam, Tx pôs novamente seus fones, e pelo celular clicou em sua playlist de city pop japonês, por algum motivo, a produção das músicas daquele período tão distante a passavam um forte sentimento nostálgico, de uma realidade que nunca viveu mas que de alguma forma conseguia imaginar, enquanto ouvia ‘midnight driver’, um outdoor subterrâneo passou pela janela, ele mostrava no maior estilo nacionalista: Um militar com os braços estendidos para cima de forma triunfante, sendo recebido por sua esposa e filho em frente a uma típica casa imperial, tudo acompanhado de uma frase em destaque logo abaixo: “Sirva ao Império, e o Império servirá a sua família.”, Tx pensou na habilidade dos artistas que produziram tal criação, uma singela peça do extenso arsenal imagético do atual governo planetário, propaganda milimetricamente higienizada. Tx deu um sorrisinho ao lembrar que tal tática se enfraquecia a cada dia, em cada reunião da iniciativa, em cada invasão à indústrias Imperiais e missões de infiltração bem sucedidas. Tx sabia que o Império estava estabelecido a muito tempo e como durante esses longos anos ele passará por reformas que o tornaram uma potência incontestável, porém o tempo passa. Era tempo de destruir a fortaleza Imperial. Foi o que passou por sua cabeça enquanto o metrô saia do subterrâneo.

Enquanto isso, Troi dormia usando óculos escuros, de modo que seu único sinal de vida jazia no sútil subir e descer de seu peito. Faltando uma estação para descerem, Tx estando sentada ao lado de Troi o cutucou com o pé, no mesmo momento, ele grunhiu e ergueu a cabeça olhando ao redor, sua mente rapidamente desperta se atentando para o vagão, que agora estava mais cheio, em geral de passageiros comuns, salvo por excêntricos que saltavam à vista, como um rapaz de botas vermelhas que iam até antes do joelho, botas nada ergonômicas, esquisitas o suficiente para justificarem seu valor absurdo, engraçadas o bastante para gerar comentários maldosos, mas acima de tudo, feitas na medida para serem consideradas alta moda. Troi às vezes se pegava nesses julgamentos alheios, muitas vezes porque em missões, essas avaliações serviam ao propósito de identificar possíveis fontes de informação, o problema de tal habilidade era o lado intrusivo que se fazia pungente em momentos como aquele, onde a análise nada o fornecia de útil, a não ser a compreensão de que, sim, ele até podia ter menos grana do que aquele pivete, mas isso não o impedia de se vestir bem melhor que ele.

Uma voz anunciou a parada “Setor Arborífico” e ao sinal Tx e Troi se posicionaram nas portas. Assim que saíram do vagão, Troi fez um cumprimento levantando a mão aos dois guardas ciborgues que guardavam a divisória laser que dava acesso ao setor, Tx repetiu o movimento, os guardas não demonstraram qualquer emoção, ao que Troi usou o cartão de acesso de elite passando pela divisória, em seguida liberando o acesso para Tx sem complicações.

Do lado de fora da estação o sol brilhava forte, e reluzia em calçadas brancas limpíssimas, que guiavam os pedestres para barracas e lojas planejadas que vendiam desde plantas pequenas de apartamento a ervas requisitadas nas festas de alta classe da cidade, o aroma da rua era fresco, e as pessoas pareciam como que saídas de propagandas de margarina, todos agindo em perfeita sintonia com aquele lugar. Uma aura de felicidade moldada por anos de tranquilidade e estabilidade social exalava de uma empresária que passeava com seu cachorro pela rua, passando para um velho senhor que despreocupadamente observava produtos e conversava com outros clientes dentro de uma loja de cosméticos cuidadosamente decorada. “Cacete, eu nunca vou me acostumar com a quantidade de plantas que ainda existem por aqui, e como fazem tudo parece tão natural.” ainda se comunicando pela consciência. Ao andarem pelas ruas, a cada encruzilhada eram visíveis praças extensas onde passarinhos bebiam água em fontes imponentes de representantes políticos daquela comunidade quase secreta. “Aqui é um paraíso na terra sem dúvida.” Troi falou em voz alta enquanto tirava os óculos escuros revelando seus olhos de metal, pequenos círculos lisos, que refletiam os raios de sol criando feixes de luz fugazes, como aqueles lasers que gatinhos tanto gostam de perseguir.

Usando telepatia, Txriza disse “Troi, você acha que esse lugar continuará a existir caso consigamos derrubar o império?”, “Acho que ninguém tem a resposta para isso. Mas uma coisa é certa, podemos não pertencer a esse lugar, mas sabemos o preço que é pago para que essas pessoas possam viver à luz do sol, longe de toda a poluição e violência da Capital.”, com esse lembrete Tx pensou nos acordos mantidos entre o Império e os representantes das maiores corporações da cidade, e em suas demandas e petições por espaços que os “deixassem trabalhar” para que pudessem continuar a trazer seus maravilhosos produtos para a sociedade, objetos que iam de televisores de última geração a roupas anti-fuligem para o dia a dia. Também eram feitas demandas especiais por essas empresas, que curiosamente também possuíam setores especializados em produtos militares e de controle de massas, setores obviamente mantidos na surdina, que fechavam anualmente contratos bilionários para entregar ao império lotes gigantescos de campos de força, algemas magnéticas entre outros produtos “pacificadores”.

Tx estava perdida nesses pensamentos, e se questionava sobre o que as pessoas que Troi vigiava pensavam sobre a Cidade, ou se passava pela cabeça delas que talvez o regime atual era ameaçado por um bando de arruaceiros que se mantinham organizados o suficiente para tentar tal façanha. Tx deu um sorrisinho ao pensar nos empresários endinheirados perdendo a linha em festas enquanto suas bases, onde desde sempre tinham se apoiado, cediam graças às rachaduras que eles mesmos ajudaram a criar. Tx pensou em comentar sobre tudo isso com Troi, quando percebeu um homem acenando para ela, ele tinha uma barba comprida e bem cuidada, que o fazia aparentar ter entre 20 a 35 anos, vestido como um hippie, em uma espécie de vestido, algo que poderia ter pertencido a um Aristóteles vaidoso, a peça era cravejada por joias verdes e vermelhas, ele estava parado na entrada de uma rua entre dois quarteirões, Tx olhou confusa por um momento e ao perceber que Troi acenava amigavelmente para o desconhecido, ela disse telepaticamente “Esse é o contato com quem você estava falando antes de entrarmos no metrô né?”, “Ele mesmo, Alex Adams, ele é um antigo amigo meu, também é um morador que gentilmente irá nos emprestar um de seus carros, para que possamos vazar daqui o mais cedo possível.”, ao chegarem perto, o tal Alex disse “Meu mano Troi, e… “ ele estendeu a mão para Tx, que retribuiu o cumprimento dizendo ”Me chamo Txriza, prazer em conhecê-lo, senhor…”, ”Alex, e pode me chamar pelo nome. Ser tratado por senhor é um fardo que ainda não estou pronto para carregar haha.”, “Alex, Alex, eu disse que essa barba não joga do seu lado, mas você que sabe. De toda forma, bom te ver.” Alex passou a mão pela barba de modo natural, uma clara mania que carregava, enquanto parecia um tanto sem graça, mas logo a impressão passou e ele fez um sinal para os dois o seguirem se virando para a rua.

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Alex os guiou pela rua que nada mais era que uma feira de ervas e artefatos místicos, as pequenas lojas possuíam colares e aneis entre outros produtos expostos em vitrines vazadas dos dois lados, o local estava vazio tirando os próprios lojistas. “Decidiu me visitar em um dia de pouco movimento, desse jeito vai achar que estou falido.”, “Se tem algo de que tenho certeza nessa vida, é de que você não irá falir por causa de uma loja de rua de erva vermelhas, ou como você diz: Folhas da Felicidade.”, reconhecendo do que se tratava, Tx perguntou curiosa “Você as planta Alex? Ou tem um fornecedor?”, enquanto a pergunta flutuava entre eles, Alex os conduzia para sua loja, ‘Ervas e Aromas Adams’, toda feita em madeira avermelhada. Dentro do estabelecimento, seus produtos estavam espalhados pelo amplo espaço, com foco especial nas ervas, que jaziam em vasos artesanais diferentes entre si, Tx se aproximava de um para ler a etiqueta abaixo enquanto Alex a respondia “Planto, rego e provo cada uma antes de pôr à venda. Quando não estou na empresa de meu pai assinando documentos, faço desse lugar minha segunda casa, as ervas são ótimas ouvintes, sabia?”, “Uhum, sei bem do que está falando”, Tx disse enquanto envolvia com a mão um pequeno caule que terminava em folhas vermelhas com formato de presas de tigre. Ao ver as plantas ela se lembrou de quando as experimentou acompanhada de Troi na casa de um amigo comum da resistência. Ela abriu um sorriso quando repassou o momento da hora da verdade onde o Doutor sabe-tudo decidiu se manter longe das plantinhas: “Qual é Troi, li em algum lugar que elas têm um efeito terapêutico, logo você que é todo organizado, certinho e zen budista não vai querer provar??”, “Acho que só te escutar falando essas maluquices já é terapia o bastante pra mim, e na verdade eu sou Taoista, é bem diferente okay?”. Naquela época eles se conheciam a pouco tempo, estavam comemorando o sucesso de uma missão de espionagem comercial que havia rendido uma grana alta pra iniciativa e o clima na casa era de festa, apesar disso os dois se mantiveram distantes do restante. Tal comportamento era mais raro vindo de Tx do que de Troi, pois ela adorava estar ao redor de pessoas, seja participando de uma Hackathon online ou jogando conversa fora com membros da resistência, tudo isso a afetava profundamente, acalmando sua mente ansiosa, de modo que ela se deixava levar por essas conexões esparsas e triviais. Porém naquela ocasião, curiosamente a maneira oposta com que levavam a vida de alguma forma fez com que se aproximassem, e quanto mais ela observava Troi, mais parecia que ele se escondia numa espécie de torre que era cercada por um abismo. De modo que toda tentativa de aproximação deveria ser feita com calma na esperança de que ele aparecesse em sua janela para oferecer um mero aceno, ela havia ficado curiosa sobre como ele chegara naquela, parecia um lugar aterrador e frio.

Tx se recordava daquele dia quando ouviu “Tx? Tá tudo bem aí?” Era Troi parado ao seu lado, com a expressão indiferente de sempre, ela disse “Tudo, tudo.”, enquanto isso do outro lado da loja Alex atendia uma senhora que olhava de forma crítica para uma samambaia Baratina, ele fazia amplos gestos acompanhados de caras e bocas para conquistar a experiente cliente, que parecia mais interessada em tecer críticas sobre os métodos de plantio do barbudo. Tx observava a cena enquanto Alex a guiava de bancada em bancada comentando sobre o efeito “transcendental” de uma erva aqui, da duração do efeito de outra ali, e a senhora sempre se antecipando, fazendo comentários como “Se essa é a erva que fumam por aqui, não me surpreende que tenham ficado com essas carinhas de abestados.”, Tx não pôde conter o riso quando percebeu Alex olhando alarmado para Troi, estendendo os braços e suplicando por uma ajudinha, ao que o amigo negou, balançando as mãos a frente. Após essa traição, o declínio de Alex se fazia inevitável, momento no qual Tx se virou e disse “Bem, acho que agora que já falou com seu amigo é melhor irmos andando, sei onde fica o esconderijo do Lupin.”, “Certo, peguei as chaves do nosso veículo de fuga.” Troi fez menção ao bolso frontal de sua jaqueta, enquanto Tx imaginava como aquela senhora devia ser uma figura memorável nas festas que frequentava.

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Ao saírem da loja, Tx puxou o celular para se certificar do caminho a seguir, o lugar em questão já era bem conhecido para ela. Tendo feito diversas visitas para analisar produtos e equipamentos surrupiados sempre no papel de programadora sênior e engenheira robótica, ocupações nas quais em um passado recente, ela tinha chegado a atuar de forma oficial. Foi em uma dessas visitas à oficina, que ela colaborou para desenvolver novas próteses que melhoravam a capacidade de deslocamento e força dos membros inferiores do corpo humano. O implante substituía a musculatura das panturrilhas e a área dos joelhos, criando uma grande resistência a quedas e maior desempenho em corridas, além disso, graças a rigidez do material utilizado, as próteses também serviam para combate. O projeto levou um longo tempo e durante o processo, Tx precisava sempre se apresentar na fronteira do Setor Arborífico, seguindo normas através de um cronograma de visitas feito especialmente pra visitantes extraordinários que não tinham o passe de elite. Uma vez lá, ela ia direto para o esconderijo e oficina onde alguns dos artefatos mais inovadores da Resistência eram criados. Tx se perguntava onde Lupin morava, uma vez que sempre que ela chegava na loja o encontrava por ali trabalhando em algo. Ele também sempre a chamava para vistoriar seus projetos, eram boas memórias:

“Tx dá uma olhada nesse circuito aqui.”, Lupin dizia programando as conexões da panturrilha sobre a mesa de trabalho e Tx cuidava da ligadura dos joelhos. Deixando as ferramentas, ela se posicionou ao seu lado com a mão sob o queixo, pensativa. Já tinha lidado com muitas portas e resistores, os entendia como se fizessem parte de seu corpo, ela disse “Aqui você precisa conectar mais dois canais de ligação em paralelo, para separar os pontos de energia, senão poderá sobrecarregar o sistema na hora da ativação.”, “Entendo, também vou otimizar as entradas de comunicação com a prótese dos joelhos. Acho que isso fará com que a dissipação de energia ocorra na maior área possível.”, “Parece uma boa ideia! Mal vejo a hora de usar essas belezinhas, nunca quis tanto ter um motivo para dar uma joelhada em alguém”, ”E eu pensando que você só estava preocupada em continuar caminhando quando ficasse velha, sua nerd da cadeira.” a fala de Lupin era acompanhada de uma expressão conciliadora e um sorriso de canto de boca, “Eu nem fico tanto tempo no computador assim, seu idiota!”.

Tx gostava das tardes que passava naquele lugar, sempre trabalhando em múltiplos projetos, ela gostava da sensação de aprender coisas novas, como a rede digital, sua quantidade de interesses estava sempre em expansão. E sua curva de aprendizado, graças à base de operações, ferramentas e orçamento livre seguia em curva exponencial. Ainda sobre seus projetos, a melhor parte era levá-los de surpresa para a Resistência. Adorava demonstrar as ferramentas e próteses que desenvolviam ali. Lembrava com orgulho de quando as suas próprias próteses ficaram prontas, e em uma apresentação bastante teatral ela quebrou uma enorme caixa com uma joelhada no meio do salão da base, para o espanto e consequente onda de exaltação de todos, no instante em que mostrou os entalhes metálicos para a plateia.

As boas memórias vinham como bytes de informação intermináveis, mas desta vez carregavam um ruído gerado pela incerteza do estado de Lupin… Ele não havia mandado mais mensagens, e no laboratório não haviam armas grandes ou alarmes até onde ela se lembrava, ele também nunca comentava sobre sua família - ou alguém com quem pudesse contar em caso de problemas - imaginou como eles seriam, se é que ele tinha alguém para quem voltar no final dos dias de trabalho. Não importava quem fosse, ela desejou que ele pudesse voltar como se nada tivesse acontecido. Do contrário… ela decidiu interromper esse fluxo de pensamento, quando ainda na rua de especiarias, localizou a via onde precisavam entrar, bastava seguir a direita e depois virar à esquerda para chegar no quarteirão onde ficava a oficina, que se localizava em uma parte mais distante da fronteira do Setor Arborífico, em meio a um conjunto de lojas focadas em consertos de equipamentos tecnológicos caseiros. No caminho para lá, ela disse “Seguinte Troi, temos três entradas possíveis, duas na superfície e uma no subterrâneo, o plano é: entramos pela entrada debaixo, pegamos o que viemos buscar, derrubamos qualquer engraçadinho que estiver por lá e saímos pela mesma entrada.”, “Me parece razoável.” Troi parecia preocupado, Tx disse “Desembucha doutor sabe-tudo.” ela respondeu ao que Troi continuou em silêncio, sua expressão seguia intransponível, ela continuou “sabe que se algo acontecer você pode renascer em um lugar melhor certo?” dando uma cotovelada de leve no ombro do parceiro esperou arrancar a sombra de um sorriso, mas Troi apenas respondeu “Não temos pista alguma do que nos espera lá dentro, pode ser uma emboscada, e pra sua informação, não existe renascimento no Taoísmo. E dadas as circunstâncias, eu não me sinto perto da perfeita sintonia com o universo para morrer ainda.”, ao ouvir a palavra “emboscada” Tx se lembrou da arma no bolso interno de seu sobretudo, sentindo a frieza do metal que poderia ter sido usado para construir circuitos de computador, com fios e placas de sistema digital prontos para serem usados em invasões de centros de dados do Império. Havia tanto potencial tecnológico e estratégico contido ali. Mas não, esse pedaço de metal foi feito com um único e frio objetivo: abrir buracos. Fundos o bastante para causar problemas e fazer uma sujeira, espalhando nada mais do que circuitos humanos.

Tx por um longo momento se deixou levar por um grave silêncio, um silêncio de bytes se desfazendo. Até que notou o olhar levemente preocupado de Troi ao seu lado, naquele instante ela esfregou as mãos dizendo “Se você trabalhasse como atendente de mercado ou cozinheiro isso seria o menor dos seus problemas. Agora vamos seguir em frente”.

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Ao chegarem na via, não notaram grande movimentação nas lojas dispostas frente a frente. Aquela para a qual se dirigiam era a terceira do lado direito. Entre cada loja, uma viela se abria permitindo o acesso aos outros quarteirões da área. Após ver que ninguém estava na rua Vx e Troi passaram em frente a primeira loja e entraram no beco à direita, ali uma escadaria descia ao lado do segundo estabelecimento, uma simples loja de conserto de geladeiras. A desceram e estando de frente para a entrada do estabelecimento inferior, Troi logo percebeu que era um bar, “Calma aí Tx, vamos mesmo entrar em um bar às 8h da manhã? Se isso não levantar suspeitas, eu sou um agente duplo em serviço.”, “Não é só você que tem contatos desse lado da Cidade sabia? Eu conheço o dono, já estive aqui algumas vezes e fiz questão de deixar claro que trabalho logo ao lado, apenas sorrie e acene e ficaremos bem”, “Certo, certo, antes de entrarmos preciso fazer uma coisa”, Troi puxou o celular e discou um número, após alguns bipes, um código apareceu na tela, ao que ele pegou a chave do carro e a posicionou sobre o código, um scanner leu o objeto e o celular respondeu ”Verificação concluída, seu veículo chegará em breve”, por fim um mapa apareceu na tela e Troi selecionou a rua que ficava nos fundos da loja. Após todo esse processo, ele teatralmente sorriu e acenou para Tx, que fez um joinha em aprovação enquanto abria a porta com a outra mão.

“Bom dia Gil!”, Tx se direcionava para um velho homem grisalho que estava escutando rádio no balcão de atendimento, sentado de lado enquanto observava o objeto. Ao seu redor o ambiente era escuro, e possuía uma decoração simples, na parede atrás dele uma placa com os dizeres “Prêmio de Melhor Cerveja Artesanal do Ano 21XX” se destacava acima de garrafas de Gin, Vodka entre outras bebidas. Tx se aproximou do balcão. Naquele instante, tendo uma visão melhor de Gil, Troi a seguiu e pôde verificar que ele vestia roupas casuais: regata e shorts, os dois de alta costura, e também possuía aneis nos dedos que por sinal tinham unhas bem cuidadas. Este detalhe o deixava mais próximo de um velhinho simpático do que de um mafioso beberrão, para o alívio de Troi. Apesar disso, ele permanecia atento aos sons do ambiente, sem tirar os olhos do velho Gil, que estando sentado segurava uma xícara de café, tendo em sua frente um grande pão de queijo já mordido num prato. Com a aproximação dos dois, ele diminuiu o volume do rádio, ao que se virou e disse ”Olá Txriza, o que a traz aqui tão cedo? Não creio que esteja atrás de um trago acompanhada desse bonitão, certo?” ele em seguida deu uma piscadinha para Tx, enquanto Troi tentava dar seu melhor sorriso enquanto olhava para a amiga, que se vendo desarmada de qualquer atitude defensiva respondeu amigavelmente “Pare com isso Gil! Ele é um pesquisador especialista em robótica, veio dar uma olhada em um projeto em andamento, apenas isso, não iremos incomodar por muito tempo.”, tal como uma atriz holográfica, ela manteve sua expressão neutra enquanto acenava com as mãos como se pudesse afastar a ideia de que aquilo era algo além de uma situação profissional, Tx pensou “Antes fosse, seria algo bem menos complicado de se explicar do que o que estamos prestes a fazer, me perdoe Gil.”

Seguindo para uma porta na parede lateral do bar, Tx pegou uma chave e a abriu enquanto usava a consciência “Aqui foi planejado para ser uma continuação do comércio de cima, mas o que aconteceu foi que aqueles que compraram as lojas iniciais acabaram adquirindo as alocações debaixo também, deixando tudo desativado ou enchendo de tralhas, o único que restou foi o bar do Gil. Que por causa da passagem lateral conveniente logo virou um ponto comum entre os lojistas. ‘Nada como um drink no meio do expediente, melhor ainda se for no sigilo’, Cultura da boa vizinhança, sabe como é.”, Troi não replicou, ele parecia concentrado em adaptar seus olhos de metal ao lugar totalmente escuro que adentravam. Dentro da sala, ele segurava a pistola quando disse “Aqui está uma bagunça, vejo caixas de ferramentas, martelos e brocas, já estamos no esconderijo?”, “Sim, na ‘loja‘ abaixo da segunda viela para ser mais exata, é como um depósito onde deixamos as coisas que são inúteis na maior parte do tempo, mas que podem ajudar em casos bem específicos” Tx tinha acendido as luzes laterais, de tonalidade esverdeada, que emitiam feixes fracos mas suficientes para iluminar o ambiente, assim como um objeto que ela apontava: ele tinha um formato de caracol que quando tocado se desenrolava em uma broca circular, deixando a ferramenta sobre uma bancada ela seguiu em linha reta até a porta que dava acesso a oficina. Parando em frente a ela, antes que pudesse abri-la, sua visão periférica notou algo ao lado, ao olhar diretamente para lá viu antigas botas escoradas na parede, elas pertenciam a Lupin, até que certo dia estragaram e desde então permaneceram por ali, não era como se pudessem gastar tempo consertando futilidades, eles tinham uma revolução a ajudar. Uma pena, eram bonitas, apesar dos rasgos na lateral e das solas metálicas enferrujadas, Lupin às vezes ainda resmungava sobre juntar os materiais para as consertar, desde então meses tinham se passado e nada de às reformar.

Tx observou Troi, notando que ele queria acabar logo com tudo aquilo, aquele lugar não lhe trazia nada além de apreensão, o Olhos de Metal acenou para que ela abrisse a porta enquanto ele empunhava a pistola, Tx disse “Em frente tem uma escada que sobe para o térreo, lá em cima é a sala principal da oficina, e indo a esquerda existe um corredor que leva à entrada.”, Troi respondeu “Certo, irei na frente para analisar o lugar”, Tx fez que sim com a cabeça, pois já conhecia a estranha capacidade ótica do amigo, que o fazia ver as ondas infravermelhas de um ambiente.

Ao por a mão na maçaneta, Tx teve a estranha sensação de que talvez nunca mais voltaria àquele lugar, tudo por causa de um drone idiota, e caramba, do descuidado do Lupin.

.08

Tx abriu a porta lentamente enquanto Troi direcionava sua arma para cima, ele olhava cada degrau em busca de ameaças, em especial algum sinal de vida, porém tudo estava quieto. A escada vazia e escura graças à falta de iluminação, era abafada e claustrofóbica, uma vez que não haviam dutos de ventilação. De modo que a poeira se misturava ao ar parado e quase irrespirável. Ele foi na frente subindo lentamente, seu passado militar marcando seus movimentos, rígidos e certeiros. Logo atrás, Tx havia pego a Magnum, ainda contrariada, enquanto tentava fazer o mesmo que ele, um degrau de cada vez. Durante a subida ela logo notou que suava um pouco, sentindo a umidade em suas costas sob o sobretudo.

Eles já estavam na metade da escada e tudo era silêncio, olhando para cima nada era visível, Troi continuava em frente, e sua quietude confirmava que o caminho estava livre. Passo a passo, o leve ranger dos degraus contra o peso dos dois era irrisório para pessoas comuns, mas não para mercenários ou agentes do submundo. E se alguém estivesse esperando por eles? Poderiam estar se entregando naquele exato instante, dois rebeldes idiotas entrando em um abatedouro. Tx ignorou os alertas de sua mente ansiosa e analítica, afinal eles já estavam em um caminho sem volta, ela continuou subindo.

Foram só mais alguns passos e Troi finalmente havia chegado ao final da escada, Tx logo o alcançou a tempo de notar com surpresa como sua postura havia se endurecido ainda mais do que imaginara que fosse possível. O amigo estava paralisado enquanto olhava para um canto da grande sala, onde perto de uma mesa, jazia um homem caído, numa posição que transmitia uma urgência abandonada, àquela hora, o sangue já estava seco.

Tx desviou o olhar consternada, não podia acreditar. Se concentrou no suor frio descendo pelas costas. Tentando se lembrar o que os trouxera até ali, ela buscou ao redor, apenas para ver caixas empilhadas. Ela então começou a sentir espasmos em suas mãos enquanto observava apática alguns circuitos sobre as mesas de trabalho tão familiares e… o sangue respingado em ferramentas espalhadas pelo chão, seu estômago se embrulhou como se fosse feito de plaśtico. Não havia sinal do maldito drone. Havia apenas uma certeza, quase irreal, que ressoava em sua mente embotada pelo choque: “Aquele ali é o Lupin.”

Troi continuou calado, colocando a arma no coldre, ele andou até uma porta lateral no instante em que foi possível ouvir uma descarga sendo acionada. Tx ainda embotada pelo choque desacreditou de seus olhos quando logo em seguida viu passar pela porta do banheiro um homem desconhecido de moicano e roupas casuais, tinha sido ele que havia feito aquilo com Lupin? Enquanto tremia de ódio, ela notou que o homem vestia luvas, ou eram próteses? Fosse o que fosse, elas tinham pinos estranhos. Ao ver Tx, seu rosto se contorceu de modo predatório enquanto fazia menção de pegar sua arma na cintura, até que Troi desferiu um soco em sua barriga pegando a arma e a jogando longe, segurando-o firmemente para logo em seguida o bater contra a parede em um baque seco. O homem nem teve tempo de reação quando levou uma cotovelada e teve a boca coberta pela mão de ferro de Troi. Tudo que pôde fazer foi se revirar mas não tinha condições de revidar, não após o golpe que o havia tonteado. Sangue vermelho, como o de Lupin, pingava de sua boca enquanto tudo que podia fazer era dirigir um olhar furioso aos dois. Tx se forçou a manter o controle quando usou a consciência no desconhecido “Agora que já nos cumprimentamos pode ir falando, cadê a merda do drone?”, Tx mal notara que segurava a arma com as duas mãos. E mesmo tremendo drasticamente, ela a apontou para a cabeça do homem, trocando um rápido olhar com Troi, ao que acenou para que ele deixasse o homem responder. O desconhecido cuspiu sangue e disse “Vocês são idiotas se pensam que irei dizer alguma coisa, e quem você pensa que é pra apontar essa coisa pra minha cara, sua vagabunda?”, “Seu desgraça…” antes que Vx pudesse terminar de responder, o homem segurou os braços de Troi e de suas próteses, denunciadas pelas articulações entre as mãos e os antebraços, uma luz cegante foi emitida, seguida de correntes elétricas que se precipitaram fazendo com que Troi num grito contido o soltasse enquanto colocava as mãos sobre os olhos. Se aproveitando do momento o homem irado, ainda com sangue escorrendo da boca e agora com o moicano desalinhado, partiu para cima de Troi na tentativa de pegar sua arma, ele sorria um sorriso endiabrado em triunfo quando Tx prendeu a respiração sentindo a cena se desmontando em frames que passavam em câmera lenta: Troi surpreendido, prestes a ser atacado pelo homem de veias saltadas que avançava com selvageria, as mãos imitando garras tal qual um predador. Mas ele não era o único. Tx podia sentir a magnum como parte de seu corpo, e naquele instante que se dilatava, se lembrou de vídeos de leopardos abocanhando gazelas. Imagens de bocas que salivavam diante de um hambúrguer. Brigas de rua, bastões, mãos e armas que assassinavam. Era a lei do mais forte, sempre fora assim. Para sobreviver naquele mundo, era necessário se apropriar da violência, antes que ela se virasse contra você. E ali ela tinha visão de toda a cena, os frames se aglomerando como se passados através de um compilador de dados. O tempo então voltou ao normal: mordendo o canto da boca, no mesmo segundo apertou o gatilho duas vezes, acertando o tórax e o pescoço do homem, que caia em desespero pondo a mão nos buracos pelos quais sua vida se esvaia. Por mais desesperado que estivesse, sua queda pareceu infinita aos olhos de Tx, que não viam o homem que caía quase morto em sua frente, mas o amigo que havia falhado em proteger. Cuspindo mais sangue ele se contorceu dizendo “Não tem drone nenhum aqui sua piranha.” em seguida tentou se apoiar na parede na falha tentativa de se manter firme, mas as mãos escorregavam no sangue que se espalhava vertiginosamente enquanto sua boca ficava pálida e seus movimentos, erráticos. Não passou um minuto até que ele perdeu todo o equilíbrio, caindo feito um boneco defeituoso, os olhos desvairados e petrificados, parte agora daquela casca de quem um dia fora. Troi já estava de pé e franzia os olhos quando falou “Esse desgraçado quase me cegou”.

Tx havia abaixado a arma. O tremor percorrendo os braços como corrente elétrica, enquanto ouvia Troi e tentava assimilar o que havia sido aquela sensação de desmanchamento do tempo. A voz do amigo parecia bem distante, quase inaudível enquanto ecoava, indo e vindo como se atravessasse um imenso tubo metálico. Ela olhou para suas mãos, que naquele instante não pareciam mais suas. À sua frente, o mundo nada mais era que vidro embaçado, respingado por sangue, morte e sons de disparos. Ela mecanicamente guardou a magnum que tinha usado para matar um homem, ou melhor, um assassino desgraçado. “Não pense nisso agora, droga!” repreendeu a si mesma com uma mão na cabeça, o cabelo bagunçado, a pele já inerte ao suor. Ela não sentia nada, ou melhor sentia um buraco por dentro, queimando e a congelando ao mesmo tempo. Tx permaneceu naquele estado até que ouviu passos vindos do corredor que dava para a entrada, ao que Troi pegou a arma do homem caído e desferiu um único tiro, o estrondo seguido do forte barulho de algo batendo violentamente no chão. O número de corpos caídos na oficina tinha aumentado para três desde que os dois tinham chegado ali. Não podia ser verdade, devia ser algum tipo de simulação, um teste configurado a partir de hologramas, algo feito por Dox para ver se eles de fato mereciam estar na Resistência, quem sabe? Ou ela devia ter sido induzida pelas ervas do Alex, só podia ser, do contrário como humanos poderiam morrer assim tão facilmente? Merda, ela não tinha conseguido nem se despedir. A quantidade de trabalhos que tinham feito juntos, as dicas sobre novas tecnologias a serem exploradas, as comemorações após os testes bem sucedidos de próteses com os integrantes da Resistência… Estava tudo acabado, não havia mais lugar para Lupin voltar, mesmo que alguém o estivesse esperando. Tx demorou para retornar a realidade ao seu redor e quando a aceitação veio, ela pareceu indissolúvel, ao contrário do gosto de sangue em sua boca. A mordida havia pegado pra valer. Passando as mãos pelos olhos ela finalmente conseguiu olhar para Troi dizendo “A gente precisa sair daqui agora”.

09.

Lupin era um cara simples, antes de entrar para a Resistência era DJ na Zona Sul da Cidade Capital. Desde pequeno sempre frequentou a comunidade punk de seu Setor, por influência de sua irmã mais velha, que pichava paredes do metrô, túneis ou quaisquer outras passagens por onde muita gente passava, ela dizia que suas imagens e mensagens buscavam alertar as pessoas sobre a forma como o Império administrava a Cidade e sobre a violência que causavam àqueles que eram contrários a isso: pessoas “subversivas” e “perigosas” à sociedade, como ela própria e ele. A verdade é que nada disso nunca chamou muito a atenção de Lupin, mas sua irmã, Adria, vestia roupas legais e sempre tinha festas em fábricas abandonadas para ir. Também era verdade que ela tinha um jeito truculento e até agressivo de defender seus ideais, apesar disso, ela mantinha um sorriso acolhedor e sincero sempre que ele precisava, por isso, Lupin decidiu trilhar o mesmo caminho que ela. Ele foi crescendo e sobrevivendo a vida de garoto pobre que parecia uma simples consequência do sistema da brilhante Cidade Capital, e em uma das festas que foi, bancou o DJ, e acabou gostando disso. Em meio a falta de oportunidade e sob a luz de globos holográficos, às vezes, Lupin também se envolvia em confusão, principalmente com gangues rivais, em disputas que iam de garrafas de cerveja a esconderijos para a organização de seu ponto de venda de drogas ou equipamentos proíbidos. Esses eram os conflitos mais comuns, agora se Adria estava envolvida, Lupin podia ter certeza de que lutava para manter vivo algum espaço onde ela participava com outros jovens de movimentos anti-imperiais. Fato é que essas brigas de gangue não eram nada se comparadas às invasões do corpo policial nas festas ou as abordagens que sofriam nas ruas. Lupin tinha visto sua irmã sendo agredida sem motivo com bastões, gás lacrimogêneo e tasers, e ele também apanhou pela mão daqueles que quando criança via com indiferença. O tempo passava, ele continuava pobre e aos 20 anos essa era sua vida, passando de festas a brigas e colaborando em ações para ajudar os amigos a levantar pequenos comércios, que depois eram destruídos sem um pingo de justificativa por agentes oficiais. Se por um lado ele tinha se dessensibilizado à violência por outro mais do que nunca estava se engajando nos movimentos contra ela. Não por capricho, no fundo sentia que sua ira era justificada, e a usava como combustível, acompanhado por pessoas que viviam nessa mesma realidade que só tendia a piorar na cidade. Simplesmente não dava pra ficar parado vendo o mundo pegar fogo.

Naquela época, tirando esses confrontos, as coisas pareciam ir bem, a cada dia mais pessoas se reuniam a causa e em breve uma manifestação aconteceria, em conjunto com a Resistência, um grupo rebelde com o qual sua irmã vinha tendo contato. Foram inúmeros os dias de preparação que antecederam a ocupação da Praça Civil no centro da Cidade Capital. De divulgações a pequenos protestos, reunião de pessoal, criação de cartazes e bandeiras. Chegado o grande dia, todos estes elementos se reuniram a vozes de indignação que em procissão tomavam as ruas e paravam o fluxo dos carros. No decorrer do movimento mais e mais pessoas iam se aproximando da gigante onda que seguia em direção a Sede Administrativa da Cidade, local onde representantes do Império recebiam e aplicavam as ordens vindas da Base Extraterrestre Imperial. Tudo corria com certa organização, até que a multidão se aproximou do edifício, momento no qual um grande batalhão policial foi enviada em resposta, usando campos de força e agentes que com escudos começaram a pressionar aqueles que puxavam a multidão, em sua maioria, manifestantes que seguravam cartazes e hologramas pedindo pela revisão das ações policiais e aumento dos incentivos monetários às margens da Cidade. As vozes eram como trovões e os ânimos estavam se exaltando no confronto direto das forças que todos os dias os diminuiam, em nome de um poder invisível e covarde. Apesar dos empurrões os manifestantes avançavam ganhando cada vez mais espaço, se aproximando dos portões da Sede Administrativa, foi nesse momento que Lupin viu a tensão estourar, quando uma pessoa lançou uma garrafa que atingiu a cabeça de um policial, a confusão já generalizada se tornou um confronto de grandes proporções, a partir daquele momento o que era uma manifestação pacífica escalou para um implacável confronto, e no meio do mar de cabeças a sua frente Lupin viu sua irmã, por um breve momento tentando se afastar do centro do conflito. O restante daquele dia virou uma memória distante para Lupin, entrando na lista de coisas que seu cérebro escolhia esquecer de modo a amortecer a dor e livrá-lo do fardo que poderia ser pesado demais para se carregar de outro modo. Ele guardava apenas a memória de que o fim do confronto deu início aos dias em que passou a voltar sozinho para casa. Desde então não restava dúvida a Lupin sobre qual era a sua luta.

Semanas após a manifestação ele entrou para a Resistência, e arrumou formas de tentar pagar por tudo que Adria o tinha ensinado, estudou programação, robótica e aprendeu a atirar. E pensar que toda essa jornada o levou a uma emboscada em sua própria oficina no Setor Arborífico. No dia do ocorrido, ele tinha acabado de falar com Tx pelo celular sobre a nova aquisição, quando ouviu barulhos fortes vindos da porta de entrada, tenso ele pensou em mandar mensagem para alguém, mas demoraria muito para ligar o computador, o único meio de comunicação seguro de invasões, sem contar que poderia atrair os amigos para uma armadilha. Desse modo, nos poucos momentos que teve antes da entrada dos invasores optou por pegar o drone e o esconder, deixando uma mensagem manuscrita codificada sobre a mesa de trabalho no canto da sala, após isso, os invasores chegaram, um de moicano e o outro careca, os dois com armas nas mãos, eles andaram lentamente em direção a ele, que estava sentado na mesa de trabalho, mal olhou para os invasores que mexendo nas ferramentas e procurando ao redor se dirigiram a ele dizendo “E aí, onde tá o drone?”, Lupin continuou fingindo que não os havia notado, soldando fiações sobre a mesa de trabalho, os dois homens então se aproximaram “Vai bancar o desentendido?”, após o novo silêncio de Lupin, o homem de moicano o socou no rosto, em resposta Lupin tentou pegar a arma que tinha sobre o colo, mas o homem careca foi mais rápido o jogando no chão, ele então foi espancado enquanto permanecia calado.

Sem sinal do aparelho, os invasores então pensaram num plano: ligando o computador, enviaram as mensagens com toda a historinha do drone roubado para Tx e Dex, os únicos que tinham falado com Lupin mais cedo. O cara de moicano fazia isso enquanto o careca segurava Lupin, que imobilizado perto da mesa onde estava lutou desesperadamente para se soltar causando problemas para os dois, o homem que o segurava era forte, mas subestimava Lupin, que após atingi-lo com uma cabeçada conseguiu impulsionar os braços se desgarrando do invasor, Lupin então correu em direção a porta da frente em uma tentativa de fuga, mas o homem careca revidou rapidamente, e pegando sua pistola o baleou pelas costas. O impacto dos disparos paralisaram todo o corpo de Lupin, o fazendo cair no chão sentindo uma forte dor no peito, deitado de lado, a meia consciência de si mesmo, ele teve um vislumbre de vários momentos desconexos: primeiro estava em uma festa muito louco, a música alta em seus ouvidos entorpecendo seus sentidos, ele andava para a pista de dança quando num piscar os olhos foi transportado para uma nova cena, onde agora mais velho, usava um pedaço de algodão e álcool para limpar uma ferida na testa de Adria, que torcia a boca mas não reclamava da queimação causada pelo produto. Ele se recordava da conversa que tiveram mais cedo e do modo como após descrever a agressão policial, se sentiu indignado.

Após limpar os ferimentos de Adria, ele permaneceu ao seu lado, fazendo o possível para apoiá-la, quando a chegada da noite trouxe um duro silêncio que recaiu sobre os dois. Apesar de todas as dificuldades, se sustentavam em sua cumplicidade, tendo consciência do poder de um simples abraço contra o esgotamento das palavras. Lupin ainda estava naquela memória quando ao fechar os olhos para dormir, se viu em outro lugar, agora em um parque que não existia dentro dos limites da Cidade Capital, ele estava sentado em uma toalha vermelha sob os raios de sol que esquentavam agradavelmente suas costas, e a sua frente havia uma cesta de piquenique, espalhados pela toalha: copos vazios, sanduíches, salgadinhos hiper-saturados, sucos e garrafas de vinho. A tranquilidade o embalava na leve brisa do vento, quando notou que sentia falta de algo, que logo mais foi esquecido ao olhar para o lado e perceber que Txriza estava ali, sentada tão perto, tão presente como nunca. Ela tinha uma expressão serena e olhava para o céu quando ele disse “Me desculpe por não ter conseguido preparar o seu café.”, Txriza não disse nada, ela apenas se virou para ele e deu um sorriso gentil colocando a mão sobre seu ombro, Lupin então notou que estava seguro, e se deitando, admirou o céu azul uma última vez antes de fechar os olhos.

10.

Após o confronto, Tx e Troi procuraram pela sala por qualquer sinal do drone, abrindo armários, gavetas e demais compartimentos secretos do lugar, tudo em vão, até que Tx olhou novamente para o corpo inerte de Lupin. Ela respirou fundo e enfim decidiu se aproximar. Se abaixando ao seu lado, ela não pôde esconder seu pesar, os olhos cansados e os nervos à flor da pele que gelavam seus ossos. Ao lado do amigo, pôs a mão suavemente em seu ombro. Ela não era religiosa, ainda sim, fez uma prece silenciosa aos Deuses daquele mundo abandonado. Troi a observava a distância entre buscas em gavetas e olhadas para a porta, o segundo homem ainda jazia caído, a poça de sangue escarlate digna de alguma cenografia. Feita a oração, Tx respirou fundo e em seguida olhou por dentro do casaco de Lupin e nos bolsos das roupas, mas nada encontrou. Se levantando verificou a mesa e logo viu uma anotação errática que se destacava: Rua dos Caloteiros, Armazém 53. Tx de cara notou que era a letra de Lupin, e ao pensar um pouco sobre esse lugar se lembrou de que foi lá, durante uma rave, que Lupin estragou suas preciosas botas. Ela nunca soube dos detalhes do ocorrido… era mais uma das coisas que lhe tinham sido tomadas naquela manhã. Balançando a cabeça para afastar esses pensamentos, ela se virou para Troi e disse “Acho que sei onde está o drone.”.

Enquanto desciam as escadas para voltar ao depósito, ouviram sons de motor do lado de fora. “Ótimo, temos companhia.” comentou Troi. Tx torceu para sua intuição estar certa, do contrário, aquela situação inteira teria sido em vão. O relógio que antes corria, agora era um tique constante em sua cabeça. Acelerando o passo ela pulou os últimos degraus, e ao entrar no depósito, rapidamente pegou uma das botas rasgadas de Lupin, e ao pôr sua mão dentro sentiu o couro e a sola metálica, assim como uma pequena estrutura retangular e fria, “Tem alguma coisa aqui!” enquanto ela falava, era possível escutar homens no bar, e a voz de Gil, que parecia assustado. “Escuta Tx, isso vai ficar com você”, Troi pegou a chave do carro e a jogou para Tx, “O que você quer dizer com isso? Agora só precisamos fugir daqui!”, “Esses desgraçados vão entrar aqui a qualquer momento, vou segurá-los enquanto você leva o que quer que isso daí seja. Adeus Tx.”, Tx olhou desacreditada para Troi. Ele permanecia intransponível como sempre fora, parece que no final das contas ela não conseguiu o tirar de sua torre, “Que merda Troi.”. Ela virou as costas e correu as escadas. Estava no meio do caminho quando ouviu a porta do depósito sendo derrubada e o início de uma troca de tiros, rangendo os dentes ela continuou subindo. O suor já colado nas roupas, enquanto maldizia Dex e o fato de ter levantado da cama naquele dia. Passando os olhos pelo retângulo em suas mãos, identificou o número riscado da foto que Lupin mandara, aquilo era o drone que buscavam! Um pequeno e aparentemente simples receptáculo de metal, que havia sido pago não só com subornos, mas com o sangue de seus amigos. Tx prometeu a si mesma que terminaria aquela missão, mesmo que para isso tivesse que eliminar qualquer um que ficasse em seu caminho.

Na oficina ela se dirigiu a janela que dava para os fundos, tomou impulso e pulou, ignorando o vidro fino que contra o peso de seu corpo cibernético estourou em milhares de pedaços. Do lado de fora, o céu estava claro, e em meio a queda os cacos brilhavam como lâmpadas de néon multicolorido ao seu redor. Tx percebeu o movimento mais uma vez em câmera lenta. O mundo casual tomado por pedestres ao longe e pela calmaria da quadra enquanto se aproximava do chão. Caindo com os dois pés no chão, nem teve tempo de sentir o impacto graças às suas próteses, ainda assim não deu pra ignorar a ferida de gosto férreo em sua boca enquanto acionava a chave do carro. Ouvindo gritos vindos da oficina, ela limpou os resquícios de vidro da roupa enquanto seu coração batia em descompasso, “Eu deveria ao menos ter aberto a porcaria da janela.” ela pensou tentando ignorar a ansiedade latente, e se o carro não chegasse a tempo? Por sorte foi apenas um instante de espera, logo mais um veículo prata esportivo parou a sua frente. Abrindo a porta Tx rapidamente entrou. A frente um monitor de led indicava algumas funções, sem demora ela acionou o piloto automático ao que o carro falou “Diga o seu destino”, Tx respondeu “Hmmm, para fora do Setor Arborífico, pela saída mais próxima, seja rápido!!”, ”Entendido, por favor coloque o cinto de segurança.“, após a mensagem o carro começou a emitir um bipe no mesmo instante em que Tx por instinto olhou para o retrovisor, vendo uma mulher de cabelos descoloridos apontando irritada para o carro e falando com alguém logo atrás dela, “Só me faltava essa!” Tx puxou o cinto enquanto o carro acelerava, a tempo de escapar de um disparo. Já em alta velocidade, ela pegou o drone e usando seu celular começou a desbloquear a tela de segurança do aparelho. Passou a digitar senhas e testar canais de conexão enquanto o carro seguia para fora da área comercial, adentrando ruas de grande movimento onde tudo ao seu redor era formado por feixes coloridos e elementos desfocados, passou da primeira tela de segurança para encontrar outra, agora uma codificação de César. Ela se concentrou ainda mais no drone, puxou dados de agente imperiais envolvidos no carregamento, dos mandantes aos engenheiros que assinaram os papeis da encomenda, até chegar em um nome de protótipo do aparelho: ‘Prometheus’. Atravessou a segunda linha de segurança do aparelho, um sorriso ameaçou cruzar seu rosto quando sentiu algo ganhando foco do lado de fora, olhando pelo retrovisor viu um carro preto que ultrapassava os demais carros com uma urgência surreal. “Vamos, vamos”, ela já estava na terceira e última camada de segurança do aparelho, um sensor de digital. Resmungou consigo mesma, mas a mente já seguia vasculhando informações dos mandantes. Registros de hospitais e agências especializadas em próteses, parecia que o engenheiro havia trocado de mão recentemente, por uma substituta que tinha multiplas ferramentas embutidas, e claro, digitais que funcionavam com perfeição. Estava quase lá, quando ela vislumbrou a fronteira do Setor Arborífico se aproximando. Algo impedia os perseguidores de arriscar tiros, ainda assim, o carro pela contramão forçava ultrapassagens riscando o asfalto. O cerco estava se fechando. Tx copiou a digital, e a sobrescreveu holograficamente sobre sua própria, respirou fundo e… a tela se desbloqueou! Enfim obteve acesso ao drone, que para nenhuma surpresa, também sabia falar: “Drone Militar de Uso Pessoal, modelo 1001, em que posso ajudar?”, “Estou sendo perseguida! Ative todas as funções de autodefesa.”, o drone começou a carregar uma barra de led enquanto o carro ultrapassava a barreira do Setor que ao ler a placa liberou o campo de força de segurança automaticamente.

Como uma cópia o carro da loira seguia logo atrás, e falando nela, a mesma estava com um fuzil no teto solar do veículo, “Anda logo seu drone incompetente!”, o objeto estava inerte, emitindo uma luz verde que ia aumentando de brilho, enquanto isso o carro autônomo entrava em um túnel dizendo “Por favor, atualize o seu destino.”, “Hmmm, vamos ver, vamos ver, pode ir pro leste daqui, em direção ao Cais da Cidade.”, “Entendido.”, enquanto o carro recebia as novas instruções os perseguidores seguiam diretamente atrás de Tx, a uma distância de 8 metros, e já a grande distância do Setor Arborífico, a loira abriu fogo, e enquanto as balas de titânio perfuravam a lataria do carro, Tx se curvou para frente, no momento em que o drone fez um novo som dizendo “Sistemas operantes, por favor, libere o dispositivo em campo aberto.”, ouvindo a mensagem, Tx abriu a janela do carro, “Se isso não funcionar eu to ferrada de verde e amarelo.”, lançando o pequeno retângulo, que levou milissegundos para analisar o ambiente ao redor. Logo acionou hélices elétricas que o permitiam voar acompanhando a velocidade do veículo de Tx, ele então localizou o carro perseguidor, ao que o motorista do carro preto franziu a testa, fazendo menção de dizer algo à mulher, no momento em que o drone abriu um compartimento inferior por onde dois mísseis teleguiados foram lançados, caindo até quase atingirem o chão, os receptáculos avançaram atingindo as rodas do carro que em meio a fumaça sumiu rodeado de chamas e um forte cheiro de gasolina e fiações queimadas. O impacto da explosão lançou peças, engrenagens e objetos indiscerníveis pelo asfalto enquanto carros da via buzinavam e se afastavam do veículo totalmente destruído, enquanto isso o carro de Tx continuava em frente, o piloto automático imperturbável pelo caos exterior, revelando apenas múltiplos pontos vermelhos na parte traseira do veículo pela tela do comando de bordo. Tx durante toda a cena não tirou os olhos do retrovisor, observando também o retorno do drone para dentro do carro, que flutuava tranquilamente sobre seu colo ao dizer “Ameaça neutralizada.” para em seguida cair desativado sobre ela apenas para ser jogado com desgosto para o banco do passageiro, Tx enfim deu um grande suspiro se largando no banco e enquanto colocava as mãos sobre o rosto, ela rezava para que tudo estivesse acabado.

11.

Do lado de fora da janela, era possível ver os prédios e ruas movimentadas, pessoas andando com maletas ou bolsas, todas dispersas como formigas fora de formação. Na multidão às vezes se destacavam pequenos grupos: jovens em jaquetas de couro munidos de adereços metálicos, ou ainda vestindo capacetes de motocicleta personalizados, quaisquer se fossem seus símbolos, eles representavam ideais para aquelas pessoas, e mais importante que isso: algo pelo que lutar.

Tx notava o mundo de dentro do carro silencioso. A direção automática que funcionava através de uma bela aplicação codificada. Uma curva ali, uma ultrapassagem calculada aqui, tudo feito com esmero, a ativação das setas, as paradas bruscas diante de pedestres atravessando a rua sem aviso. Ela ainda não havia escutado o som da buzina, o carro seguia com uma calma inumanamente assustadora. A sensação implantada em circuitos frios que formando os sistemas do carro produziam respostas mecânicas. Tudo dentro de parâmetros e métodos dignos de um motorista perfeito: sem hesitação, sem tempo perdido entre um semáforo e outro. Seguia regido por uma regra simples: quanto menos consumo maior o lucro das viagens. O foco total na tarefa que se traduzia em autocontrole sobre-humano, sintético. Não podia ser diferente, máquinas não tinham pelo que temer, elas não liam notícias de acidentes ou sofriam pela morte de amigos, tão pouco ligavam para paradas policiais ou o preparo de funerais. Não precisavam de nada disso, só existiam para cumprir o seu propósito de forma silenciosa, sem reclamações. Se algum problema ocorresse no sistema, não diriam nada, apenas esperariam pela próxima atualização, pelo próximo humano de teste. Observando a rota, Tx se certificava de levar as mãos ao volante durante as curvas.

Ela logo notou sua paranoia, aquele dia já tinha lhe mostrado formas mais definitivas de morrer. Não seria ali num bairro esquecido por Deus no subúrbio da Capital. Após despistar os perseguidores, dificilmente se veria em risco tão cedo. O idiota do Lupin parecia ter se certificado disso, “Vai se fuder Dex.” Tx pensou apertando o drone até os ferimentos de vidro das mãos sangrarem. O sangue vermelho era ardente, sua materialidade inegavelmente pungente. Pensou nos calos que a acompanhavam desde sempre, nos frequentes alongamentos que fazia após horas diante do computador. Como não tinha ideia de como prosseguir, se deixou levar pelas dores que assaltavam o corpo, da sola dos pés ao peito. Respirando fundo o ar parado com cheiro de ala médica. Fechou os olhos e imaginou se não era aquela a visão do fim do mundo, um vazio tão grande que é capaz de triturar os ossos do corpo. O carro seguia fazendo curvas, agora sozinho, enquanto ela se esquecia de seu destino. E pela primeira vez naquele dia, se permitia chorar, as lágrimas descendo em ebulição, seguidas de engasgos que pareciam queimar a garganta. Eram lágrimas que assinalavam o fim, caindo sobre suas mãos e se misturando ao sangue carmesim. A dor se esvaindo enquanto se suturava em sua pele, escorrendo sem pausa, molhando o rosto, doendo os dedos. Tx gritava um grito que se fechava em si mesmo, ardendo a garganta. Fazia questão de raspar as cordas vocais contra as feridas abertas na superfície de seu ser. Fez isso por minutos incessantes. Era a única coisa que poderia fazer.

12. Depois do fim do mundo, uma ampla calmaria se formou, Tx pelo mapa viu que o cais estava a 10 minutos de distância. Naquele momento o carro fazia um trajeto que após passar pelo centro comercial da Cidade, desembocava em vielas estreitas marcadas por farmácias, bares e pequenos comércios que pareciam centenários em suas instalações decadentes, sendo comum o cheiro de ferrugem no ar. Tx esperava que suas lágrimas aliviassem o turbilhão que sentia dentro de si, quando a 5 minutos do cais, ela ligou o rádio e enfim percebia a falta do sol, eram 12h33, e mesmo assim a escuridão era pungente naquela região da Cidade Capital. Era um fato conhecido que um teto estelar cobria toda a metrópole. O dispositivo, sendo quase imperceptível no centro da cidade, apresentava falhas que se tornavam mais visíveis à medida que se chegava a qualquer fronteira da metrópole. A criação do teto se justificava pelo papel essencial que cumpria na manutenção de um ciclo de dia e noite artificialmente controlado e modificado a bel prazer pelo Império. Tx nunca tinha ligado para o fato de gigantescas lâmpadas iluminarem a cidade, percorrendo centenas de quilômetros sobre a cabeça de todos os moradores, elas seguiam diferentes padrões e de vez em quando passavam por reformas, que as tornavam mais naturais e sensíveis a mudanças de tonalidade ao longo do dia. De modo que obviamente os bairros “abençoados” por essas mudanças eram os mais caros da cidade. Falando em fronteiras, Tx tinha chegado em uma: o Setor de Transportação. O carro estacionou ao lado de um container dentro de um estacionamento quase vazio, e a seu lado, havia um pequeno comércio com uma banca de macarrão tradicional, em frente ao cais. Daquele lugar ela podia ver mais uma das realizações do Império na Cidade: Uma imensa muralha que separava a área marítima do restante da metrópole. Ela observava o lugar, que tinha dois navios atracados, enquanto máquinas desembarcavam containers e galões dos encouraçados. No que parecia uma situação corriqueira, pela lateral do seu campo de visão ela notou quando operadores dentro de cabines de comando, moveram uma série de alavancas desencadeando a abertura dos portões, na rádio “Wakaki Hi No Bourou” ou “Torre de Vigia da minha juventude” começou a tocar, Tx fez uma expressão de descontentamento enquanto se lembrava da letra da canção, “segure firme, meus amigos cresceram”, até que olhou para seu reflexo no painel do carro, um rosto pálido e de olheiras fundas e úmidas. Ao olhar o aspecto cadavérico que parecia saído de uma tumba, ela percebeu que fazia horas que não comia nada. Qual seria o próximo passo? A missão havia sido cumprida, não havia? Mesmo que para isso agora houvessem corpos que não se levantariam de qualquer tumba. O cais estava pouco movimentado, o carro passava despercebido, quase como uma assombração barata. De seu interior naquela cripta anestesiante, embalada pela suave melodia de uma canção nos olhos de Tx, memórias distantes de missões com Troiner e Lupin se fizeram nítidas como se iluminadas por candelabros. Risadas e longas conversas acerca dos planos de cada um para quando o Império nada mais fosse do que uma amarga lembrança a muito enterrada. Viagens, corridas e piqueniques sob o sol, planos bobos que agora a tiravam um sorriso nostálgico e melancólico. Com o gosto salgado das lágrimas em sua boca, ela decidiu que seria uma boa dar uma passada na banca de macarrão, ela passeara pelo vale dos mortos, ainda assim, a fome não era chegada a negócios. Ali dentro a música ressoava solitária “Vamos nos encontrar teimosamente”, dizia a cantora, Taeko, ao som de tristes notas de piano. Tx respirou fundo e limpou os olhos, pegou o drone e o colocando no bolso ouviu “Isso foi tudo. Foi tudo que eu pude fazer” quando enfim saiu do carro, deixando a melodia às portas fechadas da tumba. Tx chegou na banca com as mãos no bolso e pediu macarrão com carne apimentada, então se sentou na bancada alta de frente para o cais. Assim que o funcionário virou as costas ela passou os braços pela bancada e lavou as mãos na pia. A água gelada que lembrava agulhadas. O sangue ao menos estava indo embora. Enxugando as mãos ela voltou ao banco e olhou para o celular, onde haviam duas notificações de Dex: “Onde você está?”, “Troiner também não me responde” enviadas a 30 minutos atrás, a primeira poucos minutos após a segunda. Tx cruzou as mãos e olhou para frente a tempo de observar um grande navio que se aproximava do cais. Ele era seguido de um forte feixe de luz que invadia o portão, era de um brilho terrível. Semicerrou os olhos, desejou estar de frente para qualquer tela que fosse, qualquer fuga digital, simulada. “Que idiotice ter aceito essa missão”, onde estava com a cabeça? Ela pegou novamente o celular e digitou “Não quero mais fazer parte dessa merda.”, o fechando logo em seguida e baixando a cabeça. Alguns minutos depois, ouviu um alto barulho, levando a mão a arma automaticamente apenas para travar o movimento, era só o cozinheiro com uma tigela de macarrão. Para além do movimento, ela não pôde conter a expressão, carregada de punhais. O funcionário a observou assustado, enquanto Tx se desarmava sobre o balcão. Ele parou, como se pensativo sobre os riscos e seguiu em frente, um tanto preocupado. Tinha aceitado seu destino, mas não poderia deixar de entregar o pedido. Ele era jovem e parecia o tipo simpático que queimava o fundo das panelas de vez em quando. Pegando o pedido das mãos assustadas, Tx resmungou envergonhada “Hm, obrigada.”, ao que ele fez um aceno e se afastou. Ela soprou o macarrão antes de o experimentar, sua boca estava seca e a garganta parecia arranhada. Quando levou uma boa garfada à boca se surpreendeu: o macarrão estava macio e saboroso, além de possuir a quantidade certa de pimenta junto ao tempero. Mastigou com calma, sentindo o alimento aos poucos cuidando de seu sistema, reavendo o pouco de vida que restava em fragmentos embotados. Batia o prato rapidamente, a garganta perdendo a aridez, a força retornando às pernas e braços. Após várias garfadas, pegou novamente o celular e digitou “Estou no cais, Banca de macarrão: Hiper Talharim”, e continuou comendo enquanto observava o movimento dos portões do cais sendo fechados fazendo a luz acusatória se dissipar cada vez mais. Os robôs naquele momento estavam desativados, e os operadores fechavam as cabines para o horário de almoço, ao saírem de vista, ela viu pela calçada um grupo de crianças, de todos os gêneros, não pareciam ter mais de 15 anos, eles se aproximaram de um robô e enquanto um deles pichava algo, os outros brincavam ao redor com uma bola. Num certo momento uma menina tirou de sua mochila uma espécie de vara de pesca com a qual conseguiu pegar diversos objetos da água parada, ela então chamava animadamente os amigos para compartilhar os achados, enquanto alguns gritavam entusiasmados e batiam palmas. Depois de um tempo, com a pixação enfim concluída, Tx franziu os olhos e leu “Carregadores de bosta ;P”, ela deu um sorrisinho enquanto as crianças batiam em retirada, a tempo de evitar os guardas do cais. Ao terminar a tigela de macarrão, Tx pediu outra, o que pôs um sorriso orgulhoso no rosto do atendente, ele não parecia mais tão assustado. O segundo pedido chegou um pouco depois, e um leve cheiro de queimado parecia vir da cozinha, ao levar a nova tigela, Tx a pegou agradecendo mais uma vez. O macarrão estava um pouco mais passado que o ideal, mas Tx deu um desconto, ela não era uma cliente tradicional, era compreensível. Após terminar a refeição, se sentiu presente de si mesma, era como se sua alma tivesse finalmente encontrado o antigo cadáver, agora retomado. Ela esperou por Dex na banca. Passados poucos minutos ele apareceu vindo de uma rua que passava ao lado do estacionamento, Tx então se levantou e foi ao encontro dele. Se aproximando, ela respirou fundo e esperou “Oi Txriza, que alívio ver que você está bem.”, apesar da expressão cansada ele parecia calmo quando fez menção de abraçá-la, ao que Tx respondeu tirando do bolso o drone e o estendendo a sua frente “Acho que você está atrás disso.”, “Tx, o que aconteceu? Por que o Troi não está com você? Passou nos noticiários uma perseguição que começou no Setor Arborífico e terminou interditando uma das avenidas da Cidade Capital, fiquei preocupado.”, ele não estendeu a mão para o drone ao que Tx abaixou o braço o apertando, o objeto a relembrando da morte, do cheiro nauseante de corpos jogados. Seu estômago se contorceu, ao que ela se virou e começou a ir em direção ao carro dizendo “Troi e Lupin, nenhum deles está mesmo comigo, e sim fomos perseguidos, por mercenários, mas nada disso importa mais certo? Você tem o seu drone e eu quero seguir com minha vida.”, ela caminhou em silêncio para o carro, o enjoo a ameaçando. Ela se apoiou no carro, tragando o ar, acalmando os nervos, quando sons de trovões se fizeram ouvir. Dex a seguiu de cabeça baixa, sem saber onde pôr as mãos até que as colocou em seus bolsos. Tx pegou a chave do carro e antes de entrar olhou para Dex com uma expressão de desapontamento, ele disse “Deixe-me só conversar com você antes de ir, okay?”, ela não respondeu, o enjoo também fora controlado, era pouco, mas já era algum controle. Tx abriu a porta e entrou direto no carro. Dex deu a volta e fez o mesmo, Tx nada disse, ao que ele entrou também. Os dois fecharam as portas cortando o som do vento e isolando a chuva que tinha começado a cair lá fora, Tx olhava fixamente para o cais, com as mãos fechadas sobre o colo segurando o drone, Dex a observava, ele sabia notar danos colaterais quando os avistava, “Sabe Txriza, quando eu comecei a Resistência, não foi nada planejado, nunca parti de um grande ideal nem fui acometido subitamente por um senso de excepcionalidade. Na verdade, foi um lento processo de dor, onde eu tive que decidir como fazer para seguir vivendo, por que se continuasse do jeito que estava, eu perderia a pouca esperança que tinha com o mundo ao redor. Estive cercado de amigos que me ajudaram nas primeiras reuniões, onde debatíamos sobre como ajudar as pessoas de nossa comunidade, tomando pequenas ações para proteger quem não conseguia se manter longe das perseguições do estado. Parecia que quanto mais faziamos, menos segurança conquistavamos. Aqueles que deveriam proteger o povo destruíram casas e sonhos, éramos barulhentos demais, tinhamos demandas demais, queriam que fossemos trabalhadores conformados com a vida no lixão da Capital. Eles tentaram de tudo, tiveram dias onde o pó das lixeiras que subiam de fogueiras improvisadas, foram sinônimo de abrigo contra o relento. Medicação, alimento, moradias dignas, um futuro diferente, de liberdade possível. Movidos pela luta, muitos se mantiveram firmes comigo. Sabíamos que a alternativa era inominável. E foi assim que resistimos, ganhamos espaço, novas lideranças, um nome que carrega os desejos e esperanças de um povo. Apesar disso, perdi muitas pessoas boas pelo caminho, pessoas com corações amplos que me deram forças pra seguir lutando. No começo pareceu que tudo que fazíamos não resultava em melhorias reais, era como essa chuva que cai agora, até podemos sentir a água que passa pelo teto, mas ela está poluída com ferro e fuligem, para podermos de fato sentir a chuva, precisamos nos livrar do teto que a cobre.”. Ele fez uma pausa enquanto olhava ao redor, na banca de macarrão o atendente fechava o estabelecimento, se esquivando dos pingos que ameaçavam molhar todo o balcão. No carro, Txriza olhou para Dex, sua expressão estava fechada, mas seus olhos demonstraram solidariedade, ele então continuou “O que quero dizer com tudo isso é que eu sabia que teria que pagar um preço pelo que pretendia fazer. Chorei e sofri pelas perdas que tive, e ainda sofro. Mas eu sabia que elas poderiam acontecer, e acho que foi um erro não ter sido mais direto sobre as reais implicações que acompanham o que fazemos. Esse Império desgraçado não vai se render sem mostrar as garras. E cabe a nós batermos o pé e os encarar de frente, do contrário, a carnificina não terá fim. Eu sinto muito pela sua perda Txriza, eles também eram meus companheiros.”. A chuva continuava caindo pelos dutos do teto celestial, preservando o fenômeno que acompanhava a existência humana desde sempre, regulando a temperatura da Cidade e acalmando o fluxo das ruas, Tx gostava do som das gotas caindo, havia algo de misterioso no fenômeno que volta e meia invadia a Metrópole de ferro, trazendo uma lembrança resplandecente de que existia um mundo fora daquelas muralhas, ela olhou para Dex e disse ”Preciso esfriar a cabeça, e de um tempo para pôr as coisas no lugar.”, “Certo, tome o tempo que precisar, você sabe onde nos encontrar.”, ela lentamente balançou a cabeça de modo afirmativo e passou o drone para Dex, que o pegou, guardando-o rapidamente no bolso interno do casaco cinza. Puxando o capuz ele disse “Fique bem Txriza, e obrigado por tudo.”, “Você também, vê se pega um pouco de chuva por mim.”, ele deu um joinha abaixando o capuz do lado de fora do carro, batendo a porta e saindo em disparada pelo caminho de onde tinha vindo, “Só sendo pirado pra dar conta desse trabalho.” Txriza pensou consigo mesma contendo um sorrisinho vendo a forma desajeitada com que Dex corria. Ela então ligou o rádio, e ao som de ‘Dear Breeze’ saiu do estacionamento, e sob a chuva seguiu no modo manual pelas vias da cidade se sentindo esvaziada no isolamento do veículo, não era um esvaziamento doloroso de antes, o buraco havia mudado para estar mais próximo de uma inércia. Pelas ruas vazias Tx seguia ouvindo “Em que dia chegarei a este mar?”, quando passava em frente a grandes outdoors anunciando os novos trajes anti-fuligem, seguidos por torres de bancos e departamentos de telefonia clandestinos, quando uma das propagandas captou a atenção de Tx, anunciando a experiência em uma sala de realidade aumentada na temática praiana. Naquele momento tudo que envolvia o interior do veículo era música “Sunset Beach, o que se reflete no pôr do sol”, no instante em que Txriza enfim chegava em uma vizinhança conhecida. Parando o carro em uma vaga lateral da quadra residencial, ela pegou o celular e digitou “Oi Van, você tá em casa?”.