Cabeça nas Nuvens

8 julho 2023

Andando pela cidade ao entardecer olho ao meu redor: tudo vazio, sem sinal de pedestres, carros ou vida.

É a hora da escuridão tomar a cidade para si, as sombras alongando-se pois sua hora preferida enfim chegou. Ando com calma, respirando o ar frio que me transpassa como gelo gaseificado, olho as varandas e as vitrines de lojas com seus manequins adormecidos: os corpos sem rosto parados como que pela eternidade. É quase como se esperassem o instante em que se libertariam de sua inércia inegociável.

Eu os ignoro e sigo em frente, sem saber aonde pretendo chegar ao certo, até que ao atravessar uma rua vejo uma silhueta saindo das sombras, me paralisando no meio de um passo a escuto falando:

-hora se não temos aqui um andarilho perdido. A silhueta muda de forma constantemente, como se fosse fluida, feita de água, transitando entre gêneros e sob múltiplos estilos de roupa, apenas sua voz se mantém estável e clara como o toque de um sino, um sino de igreja. Se a tivesse de descrever diria que sua figura emanava confiança. Cada palavra sendo dita como se marcadas pôr batidas ordenadas.

-Quem é você? Pergunto confuso.

-Sou aquilo que você teme. Ela responde simplesmente.

Franzindo as sobrancelhas respondo:

-Certo, já vi filmes o bastante para saber que eu já devia estar a quilômetros de distância no momento em que a avistei, como fui lerdo o bastante, vou ficar e ver aonde isso vai dar.

-Você se acha esperto o suficiente para tirar conclusões sobre situações que não dependem de você, apesar do fato de ficar constantemente pretendendo ter sabedoria sobre o funcionamento do mundo.

-Estou cansado de fugir, a que devo o bate-papo?

-Pensei que valia a pena lhe dizer algumas palavras, a começar pelo fato de que você deve continuar firme, essa cidade está decaindo aos poucos, mas isso não é motivo para que você se deixe levar também. Junte suas coisas e saia daqui, viaje, conheça lugares novos, pessoas que te mostrem o porquê vale a pena continuar seguindo, dia após dia. O mundo é imenso, e experiências são tudo que contam, no fim somos aquilo que nós permitimos viver. Cabe a você como deseja usar seu tempo, pode se remoer a vontade, mas isso não vai mudar as coisas, aceite-as como são e fazendo as pazes com seus sentimentos, viva por si mesmo.

Demorei um pouco para recuperar minha voz, senti como se tivesse sido atingido por um caminhão, passei por muita coisa, mas uma silhueta esquisita simplesmente saber tanto sobre o que sinto é algo com o qual eu não estava pronto para lidar. Respondi um tanto incerto:

-Falar isso é tão fácil, o lance é como posso fazer isso, como posso aceitar e conviver com expectativas e ações que me causam tanto desconforto, às vezes penso em como fui tolo, medroso, quando tudo que eu precisava fazer estava literalmente na minha frente. É difícil conviver com meus erros, gosto de me ver como uma pessoa sólida, racional, mas me vejo em muitas situações dominado por meus sentimentos e não sei como lidar com o peso de todos eles sobre mim. É como se eu estivesse de olho no espelho enquanto me auto saboto, sentindo como se todo o ar que respiro na verdade não mais me pertence-se, como se estivesse prestes a sufocar a qualquer segundo, tudo por minha causa, sempre imaturo, insuficiente, carente, é muito querer mais do que isso? Mais sinceridade, mais atenção, mais cuidado, apenas mais.

-A silhueta sorriu, um sorriso ameno, como se fosse culpada por estar sorrindo, um sorriso de quem sabia com o que estava lidando o tempo todo, como uma costureira diante de um padrão já bem conhecido.

-Sabe, essas questões são suas, e ao enxergá-las você está no caminho da mudança, da cura se preferir, mas para isso é necessário atenção, a insatisfação é como nossa sombra, ela é insaciável, por maior que o copo de água seja, sempre tornaremos a sentir sede, a maldição da humanidade é a descontentação. Aprenda a lidar com ela, por mais difícil que possa parecer, a cada nova escolha, o peso se torna mais leve, se degradando com o tempo. Conte com ele e o respeite, saiba que há sempre um outro dia, por isso vim aqui. Guarde essa certeza com você.

Notas

Fazem pouco mais de dois anos que escrevi esse texto, e é doido ver como eu ainda me lembro do momento que me fez escrevê-lo, longa história, curta história, eu tinha acabado de passar por uma desilusão amorosa, e cara como doeu. Foi um daqueles momentos onde eu quebrei a cara e ainda estava processando tudo que sentia, não só isso mas um conjunto de decepções comigo mesmo por estar colocando minhas energias nas coisas erradas. Eu estava me negando, procurando algo que devia estar aqui dentro do peito. Esse texto reflete bem isso.