O que Deixamos para Dizer ao Vento

22 junho 2025

Parte I

Foi quando a tarde caiu que senti um fiapo de mim mesmo descendo pelo rosto, a lágrima fria tão salgada quanto as ondas do mar. A maresia ao meu redor me envolvia numa tranquilidade tão desestabilizante que quase parei de correr. Claro que não o fiz, o senso de incerteza me impelia a seguir em frente, um passo de cada vez, por isso continuei correndo. Olhando para meu relógio notei que já tinha percorrido 2km da minha meta diária, com o sol descendo sobre o mar enquanto a lágrima solitária caía no chão, continuei correndo, agora como se fugisse dela. Que besteira, respirei fundo e engoli sentindo a garganta seca, com a lembrança desconfortável do fato de eu ter esquecido minha garrafa d’água. Fingindo descaso me concentrei nos próximos três quilômetros.

A pista àquela hora estava um tanto movimentada por pessoas de todos os tipos. Pessoas que eu ultrapassava rapidamente, eram em sua grande maioria famílias, carregando trouxas e guarda sois com passos tranquilos, os rostos cansados dos pais dando o dia por encerrado em contraste com os dos filhos, decepcionados com a falta de compromisso deles. Afinal o que seria melhor do que mais algumas horas bem gastas na construção de castelos de areia e brincadeiras de tubarão na beira da praia? A diversão para eles parecia não ter fim, e durante as férias mais do que nunca a noite era uma criança.

Seguindo pela calçada uma ventania anunciava uma possível chuva dali a pouco, apesar disso, ela não parecia impedimento para as pessoas solitárias que também vagavam pelo calçadão, perto de quiosques ou vindas das cadeiras que tomavam parte da orla. Ainda correndo pela via dos pedestres, com as lágrimas já secas e as articulações entorpecidas, bastava respirar para sentir o concentrado cheiro de protetor solar, suor - em grande parte meu - para além da água do mar e caipirinha. Nessa cena idílica para alguns e abominável a tantos outros amargurados pela vida cotidiana, lá estavam os passantes solitários. Estes esperavam pacientes pelo momento certo, em que grupos animados - e banhados a cerveja - perto de televisores em barzinhos dariam alguma deixa para se enturmarem. Ou ao menos deduzi que essa era sua esperança. Eu já estava uma semana em Corcovado, pequena capital dos chinelos e regatas, então pude notar que pessoas solitárias, geralmente se enquadravam nessa categoria, era raro ver alguma delas correndo a esmo, ainda mais com tênis profissionais e uma faixa de cabelo prendendo os cabelos suados pelo esforço e ritmo aparentemente profissional de sua corrida, ênfase no aparentemente. Esse era o meu caso, eu era um estrangeiro entre estrangeiros naquelas terras.

Passei mais um quilômetro ultrapassando pedestres em uma suave subida e durante o trajeto a paisagem foi se modificando, as gramíneas que levavam à praia dando espaço para cercas amarelas que logo mais levavam a um trecho com árvores propositalmente plantadas na extremidade da calçada de pedras que levava a uma das ruas que davam para a cidade. Quando avistei lojas abarrotadas de gente, nada pude fazer ao ser barrado pelo mar de turistas, motivo que me fez diminuí o ritmo, eram seis e pouco e o escuro do céu já se disfarçava pelas lanternas nas janelas dos quiosques e dos prédios tradicionais de dois andares. Ciente da ardência de minhas panturrilhas, busquei qualquer distração que me levasse a terminar o percurso após sair daquela zona conturbada, fiz isso enquanto esperava para atravessar uma rua estreita ocupada por uma série de motos. Suas rodas deixando rastros de terra sobre o asfalto novo que logo mais seriam cobertos por jipes - que acredite em mim, cedo ou tarde tirariam tinta de postes e meios fios pelo caminho. Na breve pausa, passei a mão pelo rosto contrariado, como se pudesse achar ali o motivo de quase ter caído num estado melodramático mais cedo, como era o esperado não encontrei nada além de lábios rachados com gosto de sal.

Passei então a observar os veículos que passavam como feixes de memórias, que logo me transportaram para os tempos de escola, quando Gilberto, Elis e eu, subíamos no telhado do colégio para tarde da noite ver a cidade lá embaixo. Não só a cidade, estando ali em cima, com o vento frio na cara e o som distante de carros e gente, era como se por uma fração de segundo - longe dos pais e professores - pudéssemos presenciar todo o mundo. Nós três fazíamos isso desde a oitava série, mas foi só no fim do primeiro ano em que tentei algo novo quando notei que estava começando a ser um impedimento flagrante para Gil e Elis. Eles tinham se aproximado bastante naquele ano, e aquela aventura que era nossa enquanto amigos, passou a ganhar novos contornos, naqueles momentos eu me afastava e olhando para as estrelas sentado na escada do lado oposto a eles, enquanto pensava numa garota de outra série que já habitava meus pensamentos, Mariana.

Um sentimento novo nasceu no começo daquele mesmo ano, e entre idas e vindas, logo tomou fôlego - apesar de eu não saber bem o que era - pelas conversas soltas na fila do lanche ou no intervalo. Não demorou até Gil e Elis me dizerem para chamá-la para um sorvete ou algo do tipo, até então eu tinha agido de forma contida - quase antisocial - sempre que a via me encarando com aqueles olhos, pode parecer bobo, mas isso era o bastante para me fazer perder o rumo das palavras e soltar um idiota “Pode repetir por favor? Perdi a linha de raciocínio”. Para ser justo eu era um adolescente, e como tal, complicava a vida mais do que precisava. Sendo assim resisti enquanto pude, sempre mantendo meu afeto por ela a uma distância segura, já éramos bons amigos pelo meio do ano e era grande meu medo da rejeição caso tentasse cruzar aquela linha. Mesmo que às vezes notasse o modo cuidadoso como ela me respondia, agindo com timidez diante de toques de mão desajeitados ou parecendo frustrada quando eu negava a possibilidade de ficar mais um tempo depois da escola.

Toda aquela situação foi se desenrolando, ou melhor se enrolando à medida em que Mariana e eu nós tornamos cada vez mais próximos - período no qual notei que Elis e Gil também se aproximavam mais e mais - porém nada havia sido dito sobre a natureza daquilo tudo. Veja bem, no passado eu já tinha ficado com garotas e sabia bem o que era sentir atração por alguém, o que me deixava confuso era o fato de Mariana me afetar de forma mais profunda do que tudo que havia vivido até então, simplesmente pelo modo como sorria ou dizia certas palavras emendadas por um sorriso despretensioso. Era outubro quando decidi que estava cansado de fugir de mim mesmo, precisava saber se aquilo que sentia não era mais do que um frio na barriga equivocado. Mas pra tirar de vez aquela dúvida da cabeça tinha que tomar uma atitude, coisa que fiz na festa de um colega em comum. Era o aniversário dele - comemorado fora da data, com o digno objetivo de esperar uma viagem a trabalho dos pais, de modo a ter toda a casa, ou melhor, toda a mansão, disponível para uma festa daquelas - e por ser divertido e bom de papo ele conhecia uma galera da escola, de modo que não me surpreendi ao ver Mariana por lá.

Jogamos conversa fora e baralho até altas horas, com bebidas e misturas próprias daquela fase da vida em que éramos apenas jovens estudantes sem pista do que ser no mundo, prontos para se embebedar pelo simples ato de se embebedar. Eram bons tempos, ou nem tanto. Fosse como fosse, logo me cansei da barulheira, Gil e Elis também estavam na festa - tinham aparecido de mãos dadas pela primeira vez - mas perto das duas horas da manhã haviam dado um sumiço, de modo que Mariana e eu estávamos sozinhos andando pela casa, passando de grupinho em grupinho, sem muito assunto, apenas tentando ocupar o espaço deixado pela tensão no ar entre nós, tensão da qual tive ciência desde o momento em que nossos olhos se encontraram no barulho da festa, instante esse que gerou uma eletricidade capaz de me manter ligado pelo resto da noite, mas que não tinha levado a nada mais além daquilo. Certo, eu estava enrolando, se não fizesse nada naquela noite, nunca mais faria, chamei Mariana para sair comigo para a parte de fora da casa, longe do cheiro forte de álcool, tendo ar fresco e pontos distantes para onde olhar seria mais fácil falar o que precisava a tanto tempo.

Estando no jardim conversamos sobre o futuro e aquele senso de resistência contra a vida adulta que se assomava sob nossos pés. Claro, não havia como fugir das responsabilidades, mas naqueles momentos de rebeldia tentávamos ao menos nos esquecer delas por um tempo, através da catarse e do exagero ou em beijos sem compromisso - que ainda nós acompanham quando adultos, veja só - para depois de tudo juntar as garrafas em sacos de lixo e rezar para nenhum responsável ficar sabendo, assim seguíamos a vida.

Sentados em um banco sobre vinhas no meio do jardim - aquela hora a rua era silenciosa, ao contrário da casa de onde barulhos de conversa se faziam ouvir à distância. Ali conversamos sobre nossos sonhos de conseguir comprar casas grandes como a daquele colega ou fazendo roteiros de viagens para fora do país - desde aquele tempo ainda penso em ir para a Itália - eram assuntos repletos de incerteza, mas cheios de esperança. Para além dos sonhos, tínhamos a certeza - assim esperávamos - de dali a pouco estarmos entrando na faculdade - lembrando disso eu sorrio ao saber do mestrado dela em andamento - ou trabalhando. Me recordo de rir alto com a perspectiva de ter uma casa cheia de tapetes e cortinas onde os gatos dela fariam a festa em suas visitas. Falamos de passar a noite jogando boliche junto de Gil e Elis para logo depois passear de carro até os limites da cidade, tudo isso após um longo dia de trabalho. Falando neles, tocamos no assunto mais espinhoso e alarmante da noite - ao menos era para mim naquela época - falamos sobre amor, e como aqueles dois não se desgrudavam mais. Que estranho isso, olhando para trás, Mariana e eu não éramos tão diferentes nesse sentido, talvez seja por isso mesmo que não houve estranhamento quando nos aproximamos lentamente, enquanto as palavras se arrastavam para o silêncio e as mãos se uniam, a eletricidade, contida durante meses enfim encontrava passagem entre nossos corpos, através de uma corrente constante e suave. Num instante toda ansiedade se acumulou para enfim ser dispersada em olhares que se traduziam em milhares de palavras silenciosas por segundo. Tantas que logo fechamos os olhos, não havia espaço para articulação, apenas reflexos, que guiavam nossos movimentos, agora magnéticos. Cada vez nos aproximando mais e mais. Foi ali a primeira vez que nos beijamos, tendo apenas a lua como testemunha.

Bem, eu estaria mentindo se falasse que lembrei disso tudo no curto período em que observava aqueles carros e motos enquanto esperava para atravessar a rua. Como dou valor à sinceridade, a verdade é que essas memórias me bombardearam em ondas enquanto eu corria mais um quilômetro até notar que não conseguiria finalizar o percurso a tempo do compromisso que tinha me feito viajar até aquela cidade praiana: a comemoração de noivado de Gil e Elis. De modo que indignamente parei a corrida e pedi um táxi para meu hotel, afinal eu tinha um banho e uma desidratação a evitar antes de sair de casa novamente.

Parte II

É engraçado como certas coisas permanecem iguais independente de quanto tempo se passe. Assim que entrei no bar - ponto de encontro dos convidados para a comemoração - logo avistei meus maiores amigos da vida: Gil vestindo uma regata branca e simples com um shorts estampado por palmeiras exibindo seu sorriso de garoto, ao lado de Elis, vibrante em uma espécie de kimono em tons de branco e vermelho. Eles acenaram para mim, e segui para a mesa no meio de um salão pequeno e arejado, ladeado por uma sequência de bancos altos de frente ao bar. O ambiente a meias-luzes era rodeado por plantas de teto, cercados e decorações de bambu nas mesas que ficavam nas laterais. Ao me aproximar da mesa deles, depois de cumprimentar seis desconhecidos - tirando dois rapazes que julgava familiares do tempo de colégio - logo parabenizei os dois noivos, e dali seguimos em uma falação sem limites pontuada apenas pelas risadas dos dois, que eram as mesmas de sempre, desde as pausas para organizar o raciocínio de Gil até as erguidas de sobrancelha de Elis. Entretidos na conversa nem notamos quando uma travessa de camarão chegou, a partir daquele momento a noite parecia sem fim. Seguimos comendo e falando sobre a vida - contei do meu trabalho em um jornal na capital - e ouvi os causos dos dois, que eram da área de finanças. Apesar da modéstia, não demorou até ficar claro que eram bem sucedidos no trabalho. Após o casamento já se organizavam para em breve passarem a morar juntos, em uma cidade a 20km de onde moro na capital, motivo pelo qual nunca mais nos vimos até aquele dia. Entre um drink e outro surgiram histórias da época da escola, momentos onde de vez enquanto Gil olhava para Elis desacreditado - engraçado pensar que ele faz isso a sete anos, desde que tinham se conhecido na oitava série - enquanto ela falava absurdos que fizera como se fosse paga para isso. O clima era tão bom que até os outros convidados contribuíram com histórias e risadas. Quando um deles contava sobre uma vez em que fugiu do colégio durante um seminário, notei Gil e Elis se apoiando lado a lado de mãos dadas, aquele gesto sutil resumia bem a relação que eu sempre imaginara vinda deles - confesso que me senti solteiro como nunca diante da cena - o afeto para além das palhaçadas continuava o mesmo de sempre. Mas isso era um detalhe, o que mais me impressionou foi notar como ainda tinham uma energia capaz de moldar a atmosfera ao seu redor, e o faziam transmitindo um sentimento genuíno de pura alegria.

O clima da mesa não podia estar mais descontraído, de tal modo que faria os desavisados desacreditarem do fato de não nos vermos a mais de um ano e meio. Seguimos papeando entre risos até que o nome de Mariana veio à tona. Bem, digamos que eu não soube como reagir descontraidamente, dando um longo gole em meu mojito, inventei uma desculpa qualquer para sair da mesa e tomar um ar. É claro que não havia dito sobre meu término recente com Mariana, e dá mesma forma como não é justo disse-lo sem maiores explicações como acabei de fazer, também não o seria dar a fatídica notícia por um simples telefonema para os meus amigos que viram muito daquilo florescer. Eles estavam claramente em outra fase da vida, como eu poderia passar meses sem vê-los e surgir com um desabafo sobre meus problemas amorosos? Fora de questão.

Do lado de fora do bar, esfriei a cabeça e me repreendi por não ter pensado melhor no assunto, afinal era óbvio que o assunto surgiria, depois do primeiro beijo naquela festa, Mariana e eu passamos a nos encontrar mais vezes fora do colégio, sempre escondidos. Não preciso dizer que ela se tornou uma pessoa ainda mais presente no meu dia a dia e com exceção de Gil e Elis, não queria que mais ninguém soubesse do que estava se passando entre a gente. Tudo porque não podia dar chance de outras pessoas interferirem e estragarem aquela experiência que estava sendo tão boa pra mim, afinal era meu primeiro namoro - esse era meu pensamento sobre a questão antes de ter tido uma conversa daquelas com Elis no dia seguinte àquele nesta viagem. Uma conversa que conseguiu explodir minha cabeça. Mas estou me adiantando, chegaremos nisso! - de todo modo, nosso relacionamento foi florescendo, e ao longo do ensino médio tivemos altas e baixas, queria poder dizer que eram questões pequenas de casal recém-apaixonado como ‘onde passaremos o natal?’, ‘Que dia você vem em casa conhecer meus pais?’, é claro que passamos por essas coisas, mas o motivo de tamanha montanha-russa era mais fundamental, como a separação que pode ser feita dos tipos de pedras que encontramos de frente ao mar, cada uma tem suas características, um modo de reagir ao vento e de se desfazer aos poucos em grãos de areia. queria ter percebido isso antes, agora era tarde demais.

Quando haviam se passado dez minutos desde minha saída, eu já planejava dizer ser um fumante inveterado para tentar justificar minha absurda demora. Acontecia que minhas pernas não me respondiam, a culpa disso não era toda da corrida mais cedo, eu nem havia terminado o maldito percurso. Algum psicólogo deve enxergar uma relação entre traumas passados e situações atuais estressantes nisso tudo, já eu, só conseguia ver a hora de me despedir sem fazer uma cena. Não me entenda mal, estava feliz por meus amigos, eram as melhores pessoas que conhecia em um grande círculo de gente que não valiam as roupas que vestiam. A questão é que não havia pesado o real impacto que vê-los novamente após tanto tempo e em circunstâncias tão precárias - me dou sim ao direito de ser melodramático, lide com isso - me faria naquele momento.

Já ensaiava ir embora quando para meu alívio Gil apareceu. Ele estava mais alto do que me lembrava - costumava ser eu o maior entre nós durante os jogos de basquete da escola - e seu corte novo de cabelo, rente e militar, lhe conferia um tom sério, quase professoral, quando ele se aproximou falei isso e ele sorriu sem graça. Apoiando as costas na grade de bambu ao meu lado, ficamos os dois de frente para a rua. Ele respirou fundo, e um breve silêncio se estabeleceu até que ele disse sobre como estava feliz em me ver, "Você parece saudável e em forma.”. Usei o pretexto para citar meu novo hobby, a corrida. Era algo recente, estava nisso a dois meses, e com certeza não tinha ligação com situações meio merda vívidas, essa segunda parte achei desnecessária de comentar com ele evidentemente. De toda forma ele não precisava da pista, logo tocou no assunto, certeiro como de costume, “E a Mariana?” falou num tom sutil quase contido. O silêncio retornou e ameaçou pesar sobre nós, até que pela primeira vez naquela conversa encarei Gil, e em seus olhos vi um toque acolhedor bem conhecido. O silêncio era agradável, mas eu não estava afim de me acovardar diante dele, além disso estava de frente a um grande amigo, sabia que podia contar com ele.

Gil ouviu toda a história, sem grandes exclamações, afirmando com a cabeça lentamente e soltando um “Uhum” de vez em quando. Não o fez por mal - mais tarde naquela noite, quando eu já estava rolando na cama sem conseguir pegar no sono, cheguei a conclusão de que ele só não queria dizer algo que me fizesse me sentir ainda pior. De todo modo, no fim da conversa, ele me abraçou e disse com a garganta apertada “É só uma fase amigo, você vai conseguir passar por isso, qualquer coisa conta comigo.”, senti muita verdade ali, antes de entrarmos no bar lhe dei um sorriso sem graça que ele retribuiu, sua expressão indicava que queria ter feito algo mais do que só aquilo. Mas não fazia mal, eu o conhecia a muito tempo e seu apoio já havia tirado um peso de minhas costas. Quando entramos no bar, a mesa estava mais fria, parecia que havíamos trazido o relento da noite - isso sem contar a demora até nossa volta - de modo que logo mais encerramos os pedidos. Na hora de pagar a conta, os desconhecidos me olhavam sem entender nada assim como Elis, mas havia um toque compreensivo em sua expressão agridoce. Antes de nos despedirmos, marcamos o próximo ponto de encontro no outro dia, eles planejavam ficar mais dois dias em Corcovado, de modo que tínhamos bastante tempo para colocar os assuntos em dia e comemorar, afinal não é sempre que as pessoas se casam, para se ter a confiança de atar laços de modo tão contundente, o mínimo que se espera de duas pessoas é que sejam ou loucas varridas ou extremamente apaixonadas, eu ainda estava tentando desvendar em qual das duas opções eles se enquadravam.

No outro dia passei a manhã e o almoço por minha conta até às duas da tarde, quando me dirigi para uma rua mais distante do centro, até parar no topo de um morro. Do topo avistei uma casinha à beira mar lá embaixo, a construção tinha paredes amarelas e vasos em formato de passarinhos ao redor. Quando vi meus amigos acenando a distância, tive certeza de que se tratava do lugar certo, de modo que fui descendo pela baixada de terra por um caminho de pedras enquanto sentia formigamentos nas pernas cansadas. Logo os alcancei, e pude ter um gostinho da vista que tinham todos os dias, um oceano azul turquesa sem fim.

O lugar, escondido de turistas - e inimigo do google maps - se localizava longe das praias principais, de modo que ali eles podiam dizer serem rei e rainha de toda a pequena costa ao redor da casinha, era lindo de ver. Mais para perto da praia, um corte de areia, branca e fina, era sombreado por um guarda-sol sobre uma mesa de plástico. Após falar com Elis e Gil, notei pelos sorrisos soltos que seria uma tarde tranquila, a desfeita na noite anterior parecia ter perdido parte da seriedade que eu imaginava ter. A sensação mais preguiçosa dessa tarde foi reafirmada pelo fato de na casa não haver mais ninguém. Quando Gil e Elis começaram a levar talheres para três na mesa na praia, os acompanhei pondo a mesa cervejas de um cooler de gelo que havia carregado esperando por um evento mais movimentado, mas não fazia mal, ficaríamos abastecidos por um tempo.

Não demorou muito e estávamos todos ao redor da mesa, espetando pedaços de carne de sol enquanto escutávamos o som de gaivotas a distância. Elis assumiu a conversa, comentando sobre as comodidades da casinha que tinham encontrado, o lugar pertencia a um casal de idosos, locais que viviam viajando pelo Brasil e que nos períodos de férias deixavam aquela moradia idílica para aluguel. Tinha sido um grande achado, indicado por amigos da empresa onde ela trabalhava. Gil comentou várias vezes sobre o processo que foi ganhar a confiança dos proprietários “Eles estavam morrendo de medo de darmos uma festa de arromba e acabar quebrando os vasos de passarinhos deles.”, “Pois é! Os tais dos canários rasteiros que diziam viver por aqui antes do tsunami de turistas. Já vi alguns e são mesmo uma gracinha.” completou Elis. Comentei sobre quando dei lascas de hambúrguer para alguns, só para tomar uma dura de um policial que apontava implacável para uma placa meio apagada de ‘não alimente os animais.’ perto da costa. “Você é a primeira pessoa da minha lista pessoal que possivelmente seria preso em uma cidadezinha no meio do nada por algo tão estúpido!” disse Elis com seu jeito brincalhão, “É, isso sim seria uma infração mais interessante do que ser pego por invadir o telhado do colégio municipal à noite.” completou Gil, para cairmos na gargalhada. Aquela história tinha acontecido no começo do segundo ano do ensino médio, quando eu já estava namorando a Mariana, em minha defesa queria mostrar pra ela o melhor lugar para se ver estrelas longe da poeira que era aquele fim de mundo, me justifiquei pros dois sem seriedade alguma. Na ocasião um guardinha da escola ouviu o momento em que subíamos pelas escadas, por eu ser o último o distraí para longe do telhado, enquanto os outros se escondiam preocupados, claro que isso não durou muito, o guardinha só me prometeu uma visita a diretoria em caso de reincidência e me mandou para casa, no dia seguinte todos estavam rachando o bico.

E assim a tarde passou, rememoramos bons momentos e compartilhamos novas experiências que tínhamos vivido desde que os dois tinham dado um jeito de serem expulsos da escola - não me pergunte detalhes, eles nunca me contaram, e eu nunca toquei no assunto. Só sei que foram encontrados numa sala de aula sozinhos enquanto era para estarem na aula de educação física - situação que foi levada a cabo pela diretora dada a general que tínhamos na época. Quando aconteceu foi um choque, estávamos no meio do segundo ano, justamente quando Mariana estava começando a se sentir parte do grupo. De uma hora para outra, bum! Éramos só nós dois pelo resto do ensino médio. Gil e Elis se comunicavam conosco por telefone, mas a distância causada pela diferença de nossos caminhos foi se alargando com uma velocidade absurda, nada de conversas no intervalo ou saídas recorrentes ao cinema, era o fim também das visitas ao telhado tarde da noite.

Num piscar de olhos estava me formando junto de Mariana, com becas e certificados de conclusão na mão. Se por um lado nossos familiares estavam presentes na cerimônia e orgulhosos, por outro só podíamos ver as fotos de nossos antigos amigos, também formandos, rodeados por pessoas que nunca tínhamos visto na vida. Não bastasse isso, meu relacionamento com Mariana estava sofrendo uma nova crise pela minha vontade de ir para a cidade capital enquanto ela pretendia seguir os estudos numa universidade da região, eu não tinha certeza se conseguiria passar meses sem vê-la, a ideia de manter um relacionamento a distância tinha uma alta chance de acabar com meu ânimo aos poucos. O fato de passar a viver numa cidade grande apresentava dois lados, de um existiam lá muitas oportunidades, por outro estaria rodeado por asfalto, pessoas rabugentas e cheiro de fumaça. Essa perspectiva era assustadora apesar de instigante. De todo modo, pensava ser capaz de suportar o frio na barriga caso Mariana estivesse comigo. Acabou que essa ideia não foi pra frente, e eu continuei em nossa cidade, após não ter passado em processos de universidades na capital. Me senti decepcionado comigo mesmo, mas logo superei. De todo modo, Mariana não pretendia se mudar caso eu passasse. Ainda assim, ela apoiava minhas decisões, dizendo para eu continuar tentando se era mesmo o que queria. Deixei a história de lado por um tempo, e voltamos a nós dar bem, passada aquela quase separação causada pelos diferentes caminhos da vida.

Sobre muitas coisas Mariana estava certa “Não era pra ser desse jeito.”, e pensar que essa frase teria outros sentidos anos a frente, como galhos de árvore que se particionam em busca do sol, às vezes se entrelaçando novamente para logo se afastarem outra vez criando suas próprias folhagens. Depois daquela tentativa falha do meu jovem eu de tentar a vida fora dos muros da cidade pequena, logo mais conseguimos entrar na mesma faculdade - a que ela tanto queria, no curso de Astrofísica ali na região - e as coisas pareceram melhorar por um tempo, era ótimo continuar vendo ela durante vários dias da semana, direto saímos da aula no mesmo horário e curtimos bastante nosso tempo juntos, nos redescobrindo naquela nova fase, agora adultos, em nosso namoro. Parando para pensar hoje em dia, sexo era um assunto empolgante no período do colégio, tópico de conversas e piadas intermináveis. Apesar disso nunca nos sentimos prontos para aquilo, quando fomos para a faculdade, uma série de novas responsabilidades se fez presente - começamos a trabalhar meio período para ajudar com despesas familiares. Eu como lojista de mercearia, ela como professora de reforço - e apesar do cansaço rotineiro, talvez todo esse processo de mudança nos fez mais maduros para começar a procurar conhecer melhor nossos corpos e a eletricidade que eles produziam juntos. Os ponteiros do relógio seguiam girando e Gil e Elis passaram a ocupar menos espaço ainda em nossas conversas, apenas eu continuava mais próximo deles, trocando mensagens - os dois haviam focado em seguir na área da contabilidade - sobre o período de faculdade. Ainda marcávamos de nos ver presencialmente, mas era raro. Dada a situação ambivalente de meu relacionamento, quase não comentava sobre Mariana com eles, fosse pelas mudanças que logo mais ocorreriam e mudariam a minha percepção de nossa relação ou por incertezas minhas sobre compartilhar ou não conflitos para os quais ainda nem tinha resposta.

Todo esse emaranhado de situações permeava minha mente nos últimos dois meses até a presente viagem, desde o evento derradeiro que tinha dado origem a uma nova fase de mim mesmo - me fazendo voltar a criar novos galhos que precisariam de muito sol, antes de começar a criar folhas novas - até o reencontro com meus velhos amigos, agora ali sentados naquela mesa de bar na beira da praia. Falamos de muita coisa, em especial das decisões que tínhamos tomado quando mais jovens - eram em sua maioria atitudes de adolescentes sedentos pela sensação romântica de liberdade supostamente dada pela vida adulta - as memórias estavam frescas na minha cabeça como a areia fria onde afundava meus pés. Enquanto relembravamos memórias de um tempo onde provavelmente fomos tolos - como todo adolescente têm direito de ser - nós divertimos e nós julgamos mutuamente sem máscaras ou encenações e nesse vai e vêm, descobrimos um novo lado de nós mesmos, lado esse que surgira, como se esculpido em pedra pela passagem do tempo.

A tarde passava como as nuvens do céu, bem lentamente, e minha cabeça viajava longe, por conta disso tal não foi minha surpresa quando os dois passaram de conversas amigáveis para trocas de pequenas farpas sobre momentos antes daquela viagem, “Sabe, é ótimo poder desabafar com um amigo nessas horas. Faz ideia de como é ter de lidar com esse cabeça dura quando se prende a uma ideia?” disse Elis com as mãos espalmadas para um Gil de cara inocente “Eu?? Foi um martírio convencer você a largar o trabalho uma semana antes do esperado.” após dizer aquilo Gil cobriu a boca enquanto Elis ficava vermelha “Tá vendo só, você sempre expõe as minhas situações com se fosse você que estivesse passando por elas.” cruzando os braços ela fechou a cara para ele. Gil abriu a boca e tentou por duas vezes encontrar o que dizer, na falta de algo bom o bastante, se virou para mim envergonhado e disse “Vou buscar água, aceita?”, assenti e cruzei as mãos me encolhendo, me sentindo totalmente deslocado enquanto ele seguia em direção a casa.

Era a segunda vez naquela viagem em que eu me via como um menino perdido, sem saber como agir. Disse que os homens eram difíceis mesmo, na esperança de tirar um sorriso inesperado diante do meu deboche de baixa qualidade, não deu muito certo. Após um breve silêncio, onde senti que precisou se segurar bastante para não falar o que realmente queria dizer, ela simplesmente respondeu “Desculpe por isso, você não precisava ver essa cena, estamos tendo desentendimentos ridículos ultimamente.”, Elis era uma pessoa muito gentil mesmo.

Diante daquilo eu me levantei e fui até a ponta da praia. Lá eu me agachei, enquanto sentia uma série de formigamentos em todos os músculos das coxas, pés e panturrilhas. De modo que me esforcei para não perder o equilíbrio, dando pulinhos para me apoiar sobre a ponta dos pés, quando finalmente me estabilizei e parei de soltar respirações entrecortadas, pude ouvir risadas contidas atrás de mim. Olhei para Elis, apoiada sobre os braços na mesa, e rapidamente fiz minha melhor expressão de bonachão, fingindo naturalidade, enquanto pensava ver sinais de umidade sob seus olhos profundos e melancólicos. Logo me virei sem maiores expressões e ainda agachado observei as ondas do mar. Os feixes borbulhantes revolvendo a areia, deixando como que pegadas por onde passavam, pegadas que suavemente eram seguidas pelo som da maré batendo contra encostas pedregosas, formando um efeito hipnotizante. Embalado pelo feitiço das águas deixei minhas mãos abertas submergirem com cuidado, a baixa temperatura acordando os nervos cansados de tanto editar textos editoriais semana após semana. Uma pausa daquilo tudo era um alívio tremendo, e tal era o meu transe que mal notei quando Elis se aproximou, os pés descalços sob o mar ao meu lado - olhando em retrospecto, essa daria uma ótima cena poética, não fosse o frio de bater o queixo… - que logo a fez saltar para fora, exclamando palavrões desmedidos - que eu dúvido terem sido dirigidos apenas ao mar - rimos um tanto depois disso, mas as gargalhadas logo se aquietaram, deixando no ar apenas o barulho do vento soprando entre as palmeiras. Naquele instante, como em singulares ocasiões, senti que estávamos de fato abertos para assuntos que só podiam existir na quietude dos lugares e mentes. Assuntos de difícil acesso e que necessitavam de uma constante revisita, como piadas entre amigos ou a casa de nossa avó. Assuntos sedentos de palavras que deixavam um gosto forte na boca e que necessitavam de confiança e sinceridade para serem seguramente compartilhados. Elis parecia ler minha mente, e ciente da minha falta de aptidão para lidar com coisas daquele tipo quebrou o silêncio “Gil me contou sobre seu término, sinto muito por isso.”, olhei para seu rosto, os sinais de umidade haviam sumido, ela parecia realmente chateada com a notícia, respondi que não era aquilo, ela pareceu não entender, continuei dizendo que, as coisas não tinham sido como aparentavam que seriam, mas que nada mais daquilo importava. “Você fez o melhor que podia ter feito, sabe disso.” respondeu afagando meu ombro, me levantando comentei que nunca tinha visto ela discutir com Gil, “Tem muitas coisas que você não viu, desde que fomos expulsos do colégio.”, perguntei se eles tinham conseguido aproveitar o fim do médio ou feito novos amigos depois daquilo, “Até que sim, mas sabe, não era a mesma coisa que nosso grupo. Gil teve dificuldade com algumas matérias, e vivia sendo tirado pra burro por idiotas.”, ele nunca tinha sido do tipo que brigava mesmo, pena que eu não estava lá para fazer algo por ele, comentei ainda observando as ondas, “Na verdade isso foi bom de certa forma. Tive que puxar muito a orelha dele, e isso fez nossa relação ficar conturbada em alguns momentos, mas graças a isso ele aprendeu a se cuidar.”, sempre a irmãzona do grupo, você não mudou mesmo! Falei debochado “E pensar que eu seria a voz da razão!” ela disse sem graça, “Sabe, foi um processo complicado. Quando entramos na faculdade então… Era muita coisa pra lidar, ficamos em turmas com horários diferentes, mal conseguiamos nos ver por conta da rotina pesada.”, pensei que tinham conseguido estudar juntos, respondi surpreso, ela negou com a cabeça “Seguimos na mesma área, mas em departamentos diferentes. Tivemos que tomar muitas decisões pelo caminho. E sobre essa viagem, vou te confessar que até estarmos aqui, eu ainda não tinha acreditado que tinha dito sim pro noivado.”, aquilo havia me pegado desprevenido - talvez de fato fossem loucos. Peraí, você quer dizer que não está cem por cento certa dessa decisão? Exclamei, “Sabe, ninguém tá cem por cento certo de nada. A questão não é essa, mas sim se temos ou não o comprometimento de arcar com nossas escolhas. O Gil sempre esteve do meu lado, independente do que fosse. Falando nisso, lembrei de como foi difícil impedi-lo de quebrar a cara do meu chefe semanas atrás.”, notando o nervosismo em sua expressão fiquei preocupado, e perguntei se aquilo tinha haver com o fato de estar saindo da empresa onde trabalhava “Sim, aquele babaca me assediou na sala onde os funcionários costumam tirar o intervalo. O desgraçado passou a mão na minha bunda enquanto eu pegava café! Quando contei pro Gil, argumentei que seria melhor esperar até eu sair de lá para tomarmos as devidas providências.”, você deveria ter deixado Gil dar uma lição nesse escroto, ele merecia com toda certeza, “Merecia, mas eu era a coordenadora de um setor de 40 pessoas, dei um prazo de duas semanas pra arranjarem um substituto. Se saísse antes acabaria prejudicando aquelas pessoas… Acabou que conseguiram em uma semana, por isso conseguimos vir para cá mais cedo. Sobre quebrar a cara do idiota não sei, mas já estou com advogados bons o bastante para levar até as calças dele. Durante o tempo que estive lá documentei casos que aconteceram com outras funcionárias. Ele vai ter o que merece.”, assenti ainda digerindo tudo o que tinha escutado, quando ouvimos atrás de nós “Não sou dado a violência, mas eu ainda vou dar um jeito de arrebentar aquele desgraçado.” disse Gil trazendo numa bandeja três copos de água, Elis deu um toque em seu nariz seguido de um beijo “E é por isso que eu te amo.”, eu realmente estava muito solteiro, mas estava ainda mais feliz por eles, aqueles loucos apaixonados.

Parte III

Mais tarde naquele dia, disse que gostaria de levá-los para correr comigo pela cidade. Após reclamações sobre falta de preparo e motivação logo incorporei o espírito de Stallone em ‘Rocky’, discursando sobre força de vontade e superação de nossos limites, não acho que foi tão bom como o do filme, mas acredito que o esforço que fiz foi fundamental para convencê-los a, pelo menos, me acompanharem. Era perto das cinco e meia quando saímos pelas ruas, já aquecidos por um alongamento cuidadosamente pensado para jovens idosos que passavam o dia fazendo contas em um computador - dizer isso enquanto fazíamos polichinelos fez toda a diferença na dedicação que fizeram sem sombra de dúvida. Como resultado disso, no primeiro quilômetro, Gil e Elis seguiam um ritmo ótimo para novatos. Me seguindo de perto a uma curta distância - é claro que eu estava trajado com meus tênis e faixa de cabelo. Estou nessa a dois meses, não é pra qualquer um - enquanto mantinhamos um trote leve pelas calçadas amplas que ladeavam a orla, a vista era surpreendente, em breve o sol se poria, tingindo o céu alaranjado em tons de roxo e azul profundo. Eu corria seguindo um percurso já conhecido de modo que conseguia prestar atenção na respiração de meus amigos, não estava afim de ser o culpado por uma torção de tendão ou desmaio durante a viagem de noivado dos dois.

Após me assegurar de que eles mantinham uma velocidade constante, Gil respirando pela boca e Elis franzindo as sobrancelhas em profunda concentração, aproveitei para perto do fim do primeiro quilômetro, abrir uma boa distância dos dois, pra mim a graça de correr estava nas disparadas, momentos onde eu dava tudo de mim enquanto cortava o vento a minha frente. Um passo por vez, usando toda a força de meus músculos para empurrar o chão - é doido pensar a quantidade de impacto que nossos joelhos aguentam se devidamente treinados - não que eu me esforçasse demais para isso, mas nesses dois meses de corrida, ainda me surpreendia com o fato de para além de dores corriqueiras e naturais ao fortalecimento do meu corpo, nunca ter me lesionado. Ultrapassei pedestres enrolados em toalhas e crianças segurando casquinhas de sorvete, cachorros salsicha e carrinhos de bebês, todos passando pelo meu campo de visão como feixes coloridos. Durante a passagem, eu mantinha minha respiração controlada e um ritmo acelerado mas controlado o bastante caso precisasse realizar uma parada brusca. Corri mais um pouco e nunca me senti tão bem até enfim alcançar uma grande placa que indicava uma das praias mais movimentadas da cidade, ali eu desacelerei, esticando bem as pernas e braços tensos pelo esforço repentino. Após isso tomei um longo gole da minha garrafa - tinha aprendido minha lição - e depois mantive as mãos na cintura com uma cara de canastrão enquanto observava Elis e Gil se aproximarem de mim.

Foi coisa de três minutos até eles chegarem, porém esse curto recorte de tempo foi o suficiente para me levar a uma grande conclusão. Eu havia compreendido o motivo de ter ficado mal durante a corrida do dia anterior.

Era o último ano da faculdade de jornalismo, Mariana também iria se formar, enquanto astrofísica. Eu tinha me decidido, iria para a capital tentar a sorte em jornais de bairro até chegar ao nível nacional, ela também estava certa de seu caminho, iria continuar estudando, seu mestrado seria dedicado ao estudo da formação e morte de buracos negros. Durante aquele ano como nos anteriores vivíamos nos desentendendo, eu era muito lento em tomar decisões, e quando as fazia, elas eram acompanhadas de muitos asteriscos que me impediam de ser confiante diante das situações, comigo sempre existia um porém - ainda sou assim e não vejo tanto o mal disso - que fazia com que eu esperasse as coisas caminharem para aí sim tentar as acompanhar, enquanto isso Mariana sempre tinha um mapa de todos as passagens e pedágios, me fascinava o modo como ela conseguia manter a mente tão concentrada e realista diante da vida. Essas características nossas, eram fundamentais, e elas apareciam em tudo, de conversas sobre viagens a encontros de fins de semana, apesar das tentativas o mais comum era acabarmos por nos desentender, chegando em meio termos que não apaziguávam as situações mas sim colocavam pólvora em um barril que iria, inevitavelmente, explodir.

Seguimos a trancos e barrancos até o fim da graduação, e por uma série de pequenas intrigas, deixamos aos poucos de passar grande parte do tempo juntos. Isso me doeu muito, mas na época eu não sabia o que devia fazer de diferente, e quando pensava em algo, sempre era algo que parecia ir contra as pedras fundamentais que faziam de mim quem eu era. Se eu tivesse que mudar tanto a ponto de ser uma nova pessoa capaz de caber naquele relacionamento, estava certo de que não sobraria muito mais do que lascas e pedregulhos quebrados do que um dia eu havia sido. Pedras e pedregulhos a parte, não demorou até chegar o fim do ano. E mais uma vez eu e Mariana posamos para a foto dos graduandos com belos certificados, com a diferença de que não estávamos mais nos sentindo tão sozinhos - apesar de estarmos distantes um do outro - conseguimos nos rodear de bons colegas de classe. Ela em projetos de extensão, eu num clube de basquete.

Esse era o cenário quando próximo das férias de ano novo ela me chamou para uma conversa usando seu tom sério e tenso, que geralmente indicava que terminaríamos reavaliando nossas maiores discussões em andamento - era um processo cansativo e pouco produtivo, mas era o melhor que podíamos fazer naquele momento, como disse Elis. Eu pensava em uma viagem para outro estado, e buscava o momento certo para falar com Mariana sobre isso. Talvez ajudasse a consertar as coisas entre a gente, ter um tempo só para nós dois numa cidade antiga e prosaica, nos embalando juntos sobre a rede em uma casa aconchegante e cheia de histórias, poderíamos fazer tudo isso para depois encerrar o dia mergulhando em algum riacho próximo. Seria perfeito.

Mas a vida não é perfeita, tão pouco são as pessoas, e se éramos como montanhas de pedra sendo cada vez mais afastadas por falhas de placas tectónicas, um novo abalo sísmico estava prestes a nos levar a um ponto de não retorno. Durante a derradeira conversa com Mariana, pude notar seu nervosismo, as mãos escovando os cabelos ondulados como se o ato pudesse evitar o que estava prestes a ser dito, estávamos na minha casa - um apartamento pequeno e alugado, onde ela passava as noites de vez em quando - sentados no colchão que ficava no chão da sala, a tv desligada a nossa frente refletia nossas imagens borradas, como se estivéssemos aprisionados por uma película de gelo fosco. O silêncio da noite era nosso único acompanhante, um acompanhante já bem conhecido por nós dois, naquele dia comentamos sobre nossos próximos passos, de modo que estávamos cientes de nossa separação física irremediável o que colaborava para o clima de melancolia aguda na sala. Apesar disso ainda não tínhamos comentado sobre o abismo emocional que a seguia. Estava na hora de enfrentar aquilo. Sem mais demora, Mariana segurou minha mão e me disse triste e com a voz embargada “Marco, eu estou gostando de outra pessoa.”.

Repassei essa frase algumas vezes enquanto via Gil e Elis se aproximando, em contraste com suas figuras pequenas, que ganhavam foco à medida que apertavam o passo para me alcançar, as palavras que eu disse para Mariana naquele dia não passavam de um borrão indistinto. Acho que pelo fato de não terem significado muito para mim no momento, eu ainda estava chocado com a revelação. Minha última lembrança clara daquele dia foi a dela saindo do apartamento um pouco depois, enquanto a minha frente Gil e Elis paravam exaustos e retomavam o fôlego com as testas tomadas de suor. Apesar disso suas expressões eram orgulhosas, logo exclamei, vocês conseguiram! Se fosse uma prova para iniciantes teriam a minha aprovação, falei exultante, eles de fato tinham se saído muito bem, já eu, apenas ia.

Dali seguimos num passo tranquilo de caminhada, lado a lado, enquanto observávamos o pôr do sol sobre o mar, com suas ondas lânguidas em aparente contato com o astro amarelo, que parecia adentrar em um espelho. “Como você consegue correr daquele jeito? Não ensinavam aquilo nas aulas de basquete até onde me lembro.” disse Gil me encarando, digamos que tempo livre se bem usado pode trazer resultados impressionantes, disse fazendo uma pausa dramática e continuando logo em seguida, se você tiver uma boa predisposição genética é claro, concluí fazendo agachamentos unilaterais. “Isso foi divertido, deveríamos fazer algo parecido quando voltarmos!” disse Elis animada encarando um Gil esbaforido, “A gente pode começar mais devagar. Uma caminhada de meio quilômetro talvez, afinal não tenho cara de corredor, nem uma faixa de cabelo.” ele se esquivou me mandando uma piscadinha, Elis pareceu contrariada, mas só por um instante, antes de começar a rir enquanto balançava a cabeça, logo éramos três paspalhos andando pelo calçadão.

Dali a pouco sentamos em um banco e terminamos de acolher a chegada da noite, que se apresentava em toda sua beleza, trajada em um céu azul crepuscular cravejado de constelações que brilhavam distantes. Na beira da orla, o clima estava fresco e o ar limpo convidava a um mergulho noturno - coisa que fiz ainda naquele dia - ou longas conversas sem compromisso à luz das estrelas. Gil e Elis pareciam alegres, abraçados lado a lado apesar do suor. Senti que precisava agradecê-los, tinha sido a primeira vez que tinha corrido com outras pessoas desde que tinha começado com aquilo, era um esporte solitário e totalmente dependente de nossa própria força de vontade, apesar disso tinha sido ótimo dividir o percurso ainda que curto com pessoas tão importantes para mim. O fato de terem seguido em frente, apesar do despreparo, me ajudou a entender o motivo de meu mal estar no outro dia. Fato era que eu tinha por um instante me sentido insuficiente pra mim mesmo, desgostoso de um esforço que parecia não valer a pena ou levar a grandes resultados, e isso se aplicava a muito do que vivi com Mariana. Talvez eu tenha sido mesmo insuficiente pra ela, sobre isso, nunca saberei com certeza. O estalo que tive entretanto, me deu a certeza de que quando corro o faço com tudo que tenho. A cada corrida, enfrento câimbras e terrenos desnivelados, de modo desajeitado e incerto, apesar disso eu sigo correndo, até não aguentar mais, quando meu corpo me diz que atingi um limite de exaustão e que pode ser perigoso continuar seguindo. Quando isso acontece eu simplesmente paro. Não é errado parar de correr, na verdade é só disso que preciso às vezes, de uma pausa para beber um gole d’água para então seguir em frente. A questão não é sobre parar mas sobre seguir dando o melhor que tenho logo depois disso, retomando o ritmo enquanto controlo cada fibra de meu corpo com um único objetivo em mente, dar o próximo passo.

Falei isso mais ou menos nessa ordem para Gil e Elis, talvez não com tanta certeza ou articulação, mas me certificando de estar dizendo verdades que me acompanhariam por anos a seguir. Verdades que seriam um elo de memória com aquela viagem que fiz para a comemoração de noivado de meus melhores amigos, que do ensino médio à vida adulta me viram começar e terminar meu primeiro namoro com uma garota que me mostrou possibilidades e formas de caminhar pela vida. Ao final dessa longa viagem concluo que, mesmo que no fim tenhamos seguido por pistas diferentes - e que muitas verdades sobre o que se passou ainda me fujam - posso dizer que tenho fôlego, mais do que suficiente, para continuar correndo com um sorriso no rosto pelos inúmeros quilômetros que vierem pela frente.

Notas

A seguir Spoiler da trama do texto, pule caso não tenha lido!

Este conto surgiu da ideia de uma amiga próxima. Ela um dia chegou e disse: porque você não escreve sobre o tema: "Você nunca foi meu, sem escrever você nunca foi meu"? Era um tema que ela tinha visto no instagram. Intrigado com as possibilidades decidi tentar escrever algo, já na intenção de explorar a mente de um personagem único durante todo o texto, e tentando aqui e ali dar mais personalidade pra narração, usando pequenas interrupções de raciocínio com pitadas de humor e sarcasmo, e fazendo as vezes o narrador se dirigir diretamente ao leitor, pedindo para esperar por certas cenas, ala Hobbit.