Parte I
Como de costume, eu estava em casa com meu calango de estimação, eram oito horas da noite de uma sexta-feira, o que não trazia nada de diferente para minha vida. Isso porque nunca fui de sair muito, seja para beber, ver amigos ou ir para alguma balada. Sempre fui do tipo que aguarda pela maré das coisas, maré que chega com o chamado de amigos, esses mesmos que não costumo ver às sextas. Mas que de vez em quando me chamam, em cima da hora e sem muitos planos para a noite, chamam para “ver no que vai dar” em um pub que descobriram ou show de alguma banda. Quando esses convites aparecem eu também costumo aparecer. Sempre tive curiosidade de me pôr nesses lugares, recantos que só existem durante a noite, eu gosto de pensar neles como as rodas em volta de fogueiras dos homens das cavernas. Naqueles antigos dias de sobrevivência, acho que bater um papo era a última das prioridades, sendo esse momento reservado à noite, que passou a perder sua fama de silenciosa com o passar de anos de muita fofoca. Naqueles momentos de descanso, eles enfim se reuniam ao redor daquela fonte de luz brilhante para trocarem histórias em meio às suas sombras tremeluzentes, experimentando pela primeira vez novos sentimentos e afetos, enquanto falavam coisas vergonhosas ou encontravam novos amores. Milhares de anos se passaram, e não acho que muita coisa mudou, com a diferença de que hoje, podemos nos envergonhar ou flertar bem mais rápido, a depender de quão dependente nos tornamos de drinks duvidosos feitos com gin ou um leve toque de canela.
Eu viajava longe enquanto passava por posts no Instagram, jogado na cama, quando vi o anúncio de um show de metal que ia rolar num bar que conhecia. De modo que duas coisas me chamaram atenção: o nome da banda “Laringe Metálica” e o fato de estarmos na véspera do natal. Algo nessa combinação me fez lembrar do gosto da maré e seus caminhos imprevisíveis, pensei bastante a respeito e enfim decidi ir. Do contrário, essa seria a primeira véspera de natal que passaria sozinho, e uma das poucas certezas que eu tinha no momento, era de que eu não estava pronto pra enfrentar isso.
Coloquei comida para o Listrado, e dei uns toquinhos em sua cabeça escamosa e fria enquanto dizia “Voltarei antes do amanhecer amigão, vê se não fica acordado até tarde.”, depois disso tomei um banho, me perfumei e logo em seguida coloquei um jeans surrado acompanhado de botas pretas, depois sem pensar muito a respeito coloquei por cima de uma blusa branca minha jaqueta de couro preferida. Com carteira e chaves no bolso e celular na mão, saí de casa.
Lá fora estava frio e com o céu cheio de nuvens, cinzentas o bastante para dar aquele ar deprê de fim de tarde, mas não o suficiente para causarem uma tempestade. Já distante de casa, uma brisa suave atingia meu rosto e movimentava folhas pelo chão quando eu me lembrei de que tinha esquecido de arrumar o cabelo, mas naquela altura eu não estava disposto a voltar para casa, temia em especial a minha cama, e não confiava em mim mesmo o bastante para fugir das cobertas e da Netflix que poderiam tentar me sequestrar descaradamente. Segui em frente pelas ruas do meu bairro, que tinha casinhas por toda sua extensão. Em sua maioria elas estavam repletas de pisca-piscas nos telhados, janelas e até envolvendo algumas árvores, em uma das casas eu avistei inclusive um papai noel de mentira sentado na varanda, cena que num primeiro momento me fez sentir um gelo na espinha. Logo notei também que era um dos poucos andando por ali quando percebi que podia ouvir meus passos ecoando pela calçada, o que era o esperado na verdade. Aquela hora, quase nove e meia da noite, as pessoas faziam ceias em família e assistiam “Esqueceram de Mim” acompanhados por chocolate quente. Qual não foi a minha surpresa, quando vi um certo movimento na rua comercial, que estava ainda mais abarrotada de luzinhas, guirlandas e estrelas. O ar antes vazio e gelado fora transformado pelo espírito natalino. Na rua tinha gente de todo tipo: passando por mim havia uma senhora sorridente carregando sacolas de uma loja de brinquedos e do outro lado da rua avistei um casal de jovens rapazes, sentados em banquinhos altos frente a frente em uma mesa de um café de esquina, suas roupas eram elegantes e eles trocavam olhares de cumplicidade que me deixavam vermelho tamanha intimidade que transmitiam.
Para além deles, a rua toda estava tomada por um clima de festa. Olhando em frente, o fluxo de pessoas não parava, e tal qual uma constante corrente entravam em lojas de roupas e bijuterias, todos com sorrisos largos e roupas aconchegantes, era como se naquele momento eles se lembrassem de que uma vez também foram crianças, andando para lá e para cá em meio às luzes brilhantes em verde, azul e vermelho, tudo parecia possível sob o céu estrelado, de um jeito que eu também me permite ser envolvido por aquela atmosfera sonhadora, comprimentando desconhecidos com desejos de boas festas e tirando fotos de duas famílias junto de um papai noel, desta vez um de carne e osso, que passava por ali.
Não tive que andar muito até me localizar perto da área dos restaurantes e bares, mas como sabia que o show ainda não tinha começado decidi ir para a praça da cidade ali perto para gastar um tempo até as dez, é claro que eu poderia ter ido ficar de bobeira no bar, mas por algum motivo não fiz isso. Mal sabia eu, mas ainda naquela noite eu ligaria esse ocorrido a algum lapso de premonição esquisito.
Chegando na praça, ouvi um concerto de trompetes e violinos que acontecia acompanhado por um coral de igreja, composto principalmente por mulheres idosas: senhoras que você geralmente encontra comprando verduras no mercado ou se reunindo religiosamente para jogar bingo acompanhado de pão de queijo e café ou em alguma iniciativa de adoção de cães e gatos de rua. Espalhados pelo espaço também havia grupos de pessoas perto de barracas de cachorro quente e frutas com chocolate, sentadas ou em pé, todas conversavam disputando com o som da apresentação musical. Observando um desses grupos, vi o momento em que crianças correndo com balões, que lembravam papel alumínio, esbarraram com um câmera que registrava uma família que abraçava um presente gigante. No momento do impacto o câmera caiu de bunda no chão, segurando desesperadamente o objeto acima da cabeça com as duas mãos, gritando algo que era inaudível de onde eu estava, não que fosse lá um grande enigma veja bem. Tudo isso ocorreu num átimo de segundo que se encerrou quando as crianças se dispersaram em todas as direções, rindo feito diabinhos.
Já a uns 20 minutos por ali, notei um homem idoso com um carrinho de sorvete, sentado no banco da fonte. Me distanciei do concerto e comprei um sorvete de menta, meu sabor favorito, ao estender a nota para o homem ele disse “Você não é do tipo que vem muito nesses lugares não é mesmo?”, ele tinha a pele parda, olhos profundos e tatuagens em padrões que para mim nada significavam: sequências de feixes esparsos e padrões circulares. Além disso, sua idade transparecia nos fios brancos de cabelo e nas sutis linhas de expressão que como frases em um livro guardavam a sua longa história de vida. Pensei um pouco sobre sua pergunta, tentando pescar naqueles olhos alguma pista do verdadeiro significado de suas palavras, de modo que nada encontrei além de uma quietude típica de um ancião, enfim respondi “O que quer dizer com isso?”, indaguei confuso e instigado pela expressão indecifrável que ele me dirigia, “Um homem jovem e sozinho ouvindo um concerto de natal, não é algo que se vê todo dia”, “Bem, não é todo dia que acontecem concertos de natal por aí não é mesmo? E com todo o respeito, por que você está se dando ao trabalho de me dizer tudo isso?” respondi com um leve tremor na voz, para logo em seguida sentir algo frio tocando meus dedos, ao que rapidamente dei uma lambida no sorvete, que por sinal era um dos melhores que comia a um bom tempo. Enquanto tinha essa realização, o senhor permanecia impassível me observando com olhos sem expressão, até que fez um movimento apontando para seu relógio, que só agora eu notava que estava ali, ele então moveu a cabeça como se tivesse visto algo no céu logo atrás de mim, de modo que me virei por reflexo, mas nada vi lá, então decidi puxar meu celular, e caramba eram dez e meia, o show já tinha começado a meia hora atrás! Olhei para onde o senhor estava sentado a poucos segundos atrás e estranhamente nada havia ali além de um lugar vazio. Procurei ao redor e não vi nem sinal do carrinho. Tudo que restava de nosso encontro era o sorvete que estava derretendo novamente em minha mão. Eu não queria perder mais tempo atrás do senhor misterioso, de modo que comecei a andar enquanto tomava o sorvete o mais rápido que podia, um tanto chateado por ter que fazer isso, eu confesso, passado um tempo curto, me vi apertando o passo numa corrida em direção ao bar.
Enquanto atravessava a praça eu me desviava de alguns pedestres que andavam sem pressa nenhuma, assim como me esquivava dos diabinhos com balões brilhosos. Já longe do concerto, eu virava a casquinha quando subitamente senti algo áspero em minha boca, contorcendo minha cara em estranhamento e separando o objeto com a língua, o peguei com os dedos ainda meio grudentos de sorvete derretido notando se tratar de um pequeno pedaço de papel dobrado, que em seu interior tinha apenas uma palavra escrita: Êxtase.
Enfim na quadra dos bares e restaurantes, de pronto vi uma aglomeração perto do bar onde o show de metal natalino iria acontecer. Tudo na cena era caótico: inúmeras vozes e pessoas correndo, algumas se afastando e outras se aproximando confusas como eu. Andando com as mãos nos bolsos de minha jaqueta, eu as mantinha fechadas, tentando mantê-las aquecidas contra a ventania que agora se fazia forte, trazendo o cheiro inconfundível de chuva que se espalhava como névoa pela rua. No centro de toda essa cena, estava uma ambulância parada em frente ao bar, seus dois paramédicos andando ali por perto conversando com os passantes. Ao ver aquilo tudo eu fiquei ainda mais perturbado com o encontro com o senhor do sorvete, “Você não é do tipo que vem muito nesses lugares não é mesmo?” sua voz ecoando em minha mente como se ela fosse uma grande caverna, cada palavra se distanciando até desaparecerem num espaço escuro e sem fundo. Olhei em volta e vi uma mulher jovem, talvez da minha idade, ali pelos vinte e poucos. Ela fumava na frente do bar, se mantendo um pouco distante dos paramédicos e parecia, levando em conta todas as circunstâncias, um tanto entediada, de modo que decidi me aproximar. Ao chegar ao seu lado disse “Oi, você saberia me dizer o que diabos aconteceu aqui? Estava vindo ver o show do Laringe Mecânica.” sua expressão ainda era de tédio e ela estava de braços cruzados. Suas roupas eram pretas e bem cuidadas, assim como seu cabelo escuro, que ondulante caia solto pelas costas, também percebi que seu olhar para mim não era ameaçador ao que ela me respondeu “Poha, você também? Eu cheguei mais cedo e vi a confusão toda acontecer”, após terminar de falar observamos enquanto um paramédico entrava no bar, “Lá pelas dez, a casa já tinha reunido uma galera, de modo que passei um sufoco para chegar à frente do palco. Uma vez lá, fiquei esperando o show começar”, ao nosso redor mais algumas pessoas estavam paradas, algumas bebendo, outras jogando conversa fora, continua ventando quando uma viatura chegou, e dois policiais agilmente entraram no bar. “Deu uns dez minutos e nada, já estava pensando em ir embora, passar na casa de uns amigos, sei lá. Quando um grito alto veio do backstage”, mais uma pausa foi feita quando o paramédico saiu com uma maca acompanhado dos dois policiais, deitado nela estava um homem com uma roupa que com certeza pertenceria ao papai noel, caso ele fosse roqueiro: ele usava uma jaqueta sem mangas de couro, calças desbotadas, correntes e caveiras, tudo em tons de vermelho, branco e preto, o sujeito estava desacordado, era careca e tinha… talco na barba? Antes que eu pudesse dizer algo a mulher continuou o relato “Esse aí é um dos idiotas. Entrou em uma briga com outro cara, os dois saíram aos socos no palco, derrubando triples, puxando cabos, uma confusão. O outro imbecil tava com uma faca na mão e tudo o mais.” enquanto ela contava a história percebi que ela balançava a perna, dissipando a ansiedade. Eu ouvia tudo totalmente estarrecido, observando enquanto o paramédico colocava o homem na ambulância com a ajuda de seu parceiro e dos policiais, mesmo um tanto distante, assim que saíram pela porta do estabelecimento senti um cheiro pungente de álcool, ao que imaginei a cena de um papai noel bêbado e furioso lutando com um desconhecido ensandecido, “Vai ver ele negou o presente do cara a alguns anos atrás e então ele decidiu acertar as contas.” falei com um tom nada sério, “Ha ha, depois de hoje o nome dele entra com tinta permanente na lista dos malvados, pode ter certeza. Seja como for, o desconhecido falou um nome no meio da briga: ‘você vai aprender a não mexer com a Débora, seu filho da …’ e continuaram assim até que o dono ameaçou chamar a polícia. Não adiantou muita coisa, e então mais gente entrou na bagunça, que só terminou quando o careca levou uma garrafada de alguém enquanto o desconhecido sumia de vista”. Observamos em silêncio enquanto a ambulância ia embora seguida da viatura, “Sério, essa história acabou com todo espírito natalino que eu ainda poderia ter hoje, tanta gente pra fazer merda, por que tinha que ser logo um papai noel?” ela disse desanimada, eu dei um sorriso amigável e respondi ”Se tem algo que sei, é que esse papai noel não devia seguir o roteiro a um bom tempo, pra ter acabado em uma briga de faca num bar de esquina.”, rimos juntos enquanto fazíamos mais comentários do tipo, até que uma leve chuva começou. Aquela hora a rua já estava mais vazia e o bar onde toda a confusão tinha ocorrido estava sendo fechado, de modo que o movimento foi se dispersando para outros estabelecimentos, eu e a desconhecida estávamos parados debaixo do toldo plástico do bar sob o som da chuva quando eu disse “Apesar de toda essa maluquice, fico feliz de ter me esbarrado com você por aqui, qual o seu nome mesmo?”, “Sou Rebecca, e você?”, “Me chamo Felipe, é um prazer”. Ela então pôs a mão além do toldo, para sentir as gotas que caíam, de modo que agora eu notava suas tatuagens, traçadas em espirais ao redor de seus dedos longilíneos seguindo em direção ao antebraço antes de desaparecerem cobertas por seu corta-vento dobrado na altura dos cotovelos. “Eu até que gosto da chuva, me lembra de que somos mais do que nossas mentes agitadas. E tudo graças a essas gotinhas geladas” ela continuava com o braço esticado, parecendo ir longe em seus pensamentos, esse movimento parecia ajuda-lá a controlar sua ansiedade. Decidi à imitar, e pude entender um pouco do que ela tentava me dizer, o que não me impediu de falar sobre a minha preferência por estar em casa durante a chuva, já que tenho um dom de sempre voltar com as meias encharcadas quando não estou nela.
A quietude que tomava a rua só era interrompida pelo som de carros passando na pista molhada ou melodias que escapavam de janelas em edifícios sonolentos. Imaginei a vida das pessoas naquele momento, a reunião de inúmeras famílias em uma data especial, carregada de reencontros, presentes, discussões acaloradas e renovações de laços. Depois lembrei de minha família, não da família grande e distante que mal se comunica a não ser por causa dessas datas especiais, mas daquela que sempre esteve próxima de mim: minha mãe. Acho que a chuva me lembrava naquele momento do constante movimento das coisas. Isso graças ao entendimento de que a natureza e a vida possuem muitas conexões, em especial, de como a minha podia ser equiparada à chuva. Eu pensava em como no ano passado eu estava na mesma nuvem que minha mãe, lembrando de como aquele lugar era grande parte de meu mundo, até que enfim decidi me desgarrar e como uma gota cai por aí para conhecer outro totalmente diferente, aprendendo que o mundo também tinha árvores, animais e solo. Eu observava uma das pequenas gotas escorrer pelo meu braço quando Rebecca cortou o silêncio “Tem uma coisa que eu queria te perguntar, mas já aviso que é meio esquisito” ela me olhou, e notei que aquela expressão entediada tinha sido substituída por algo que não sei bem descrever, apenas direi que me lembrava uma curiosidade amigável. “Pode falar, depois do que vivi hoje vai ser difícil me abalar”, “Qual é a do hálito de menta?”, “Ah, bem, eu pedi um sorvete antes de vir aqui. Por mais peculiar que isso pareça não é o acontecimento mais curioso dessa história”, tirei o papel de meu bolso e o estendi para ela dizendo “Esse pedaço de papel estava dentro da casquinha”, ela pegou o papel franzindo a testa “Êxtase… quem te vendeu essa casquinha? E por que?”, “São ótimas perguntas, infelizmente não sei a resposta de nenhuma delas. Era um senhor na praça estadual, velho e tatuado, dizendo coisas sem sentido antes de desaparecer me deixando com esse bilhete que nem sei o que significa” ela encarou o papel, como uma detetive em frente a um enigma, “É uma daquelas palavras que vem do grego, algo como se mover para fora de si, indo pra outro plano de existência, seja através de uma prática mística ou afetada por sentimentos intensos”, quando ela terminou de dizer isso a olhei impressionado e falei “Você também não vai desaparecer quando eu me virar para trás vai?”, “Ha ha ha, se eu fosse você não tentaria fazer isso!” ela disse apontando as mãos para minha direção tal qual uma assombração faria, entrando na brincadeira, dramaticamente eu me virei de costas ao mesmo tempo em que um rápido pensamento cruzou minha mente: observando os prédios e aquela rua, agora solitária e silenciosa, notei que eu ficaria chateado se ela de fato desaparecesse. Felizmente essa sensação foi passageira, quando ao me virar, senti um alívio crescente à medida em que ela foi entrando no meu campo de visão. Seu sorriso era simpático quando disse “Acho que agora você acredita que não sou nenhum fantasma, e se não for o caso, só preciso que acredite quando digo que aprendi algumas coisas na faculdade de letras”.
Aquela altura a chuva já havia passado, de modo que estávamos indo para a casa de um amigo de Rebecca, no intuito de salvar aquela noite, fiquei um tanto surpreso com o convite, mas acredito que nós dois estávamos gostando da companhia inusitada que fazíamos um ao outro. Durante o percurso, conversamos sobre várias coisas: passando pelo trabalho dela enquanto professora de português e as provações de lidar com adolescentes, às lembranças do período de faculdade, “Eu sempre fui bem nos testes, e olha que não era minha coisa favorita estudar latim! Mesmo assim eu o fazia, pilhas e mais pilhas de escritos, revisões e pesquisas, a ponto de uma vez ter tido queda de cabelo causada por estresse. Tudo porque eu sentia que precisava provar meu merecimento por estar ali”, enquanto conversávamos, agora passando novamente pela comercial, já eram onze da noite, de forma que as lojas já estavam fechadas e o movimento era de jovens e casais em sua maioria. Àquela hora a cidade tinha menos luzes acesas de modo que as estrelas estavam mais vivas que nunca, ainda assim, as nuvens cobriam a lua. Andando lado a lado, nós nos desviávamos de poças d'água e atravessávamos as pistas no sinal vermelho que permanecia alerta, mesmo que ninguém além de nós estivesse ali para os notar.
Chegando ao conjunto de edifícios residenciais, prédios com no máximo seis andares de altura, ouvi ao longe “Então é Natal”:
“Então é Natal, pro enfermo e pro são. Pro rico e pro pobre, num só coração”
E enquanto ouvia a música lembrei de um natal passado, em que estava participando da ceia na casa de meus avós maternos. Eu rememorava em especial um momento em que, com toda a família reunida na mesa, primos e tios de muitos graus e já terminada a ceia, todos conversavam sobre amenidades, “Quem começou com essa história de passas no arroz?”, “Mãee, o João tirou a minha cartinha da árvore!”, todos falando alto com a energia típica de festas de fim de ano, embalados por “Então é Natal” tocando de fundo em um velho rádio vermelho na bancada da sala. Esse era o clima geral, até que como se combinado meu avô deu uma grande risada, sentado a ponta da mesa, ele comia um cacho de uvas e conversava com uma tia que parecia um tanto desconcertada, após aquela risada parte da mesa se silenciou e minha mãe perguntou “O que tem tanta graça assim, meu velho?” em tom de brincadeira, de um jeito amigável que sempre existiu na relação entre os dois. Nisso o vovô, já meio bobinho por ter tomado umas, olhou para ela, e começou a contar um caso de natal de sua juventude, quando uma vez, ele e seus amigos ganharam um dinheiro para comprarem o que quisessem. Eram ele, Marcos e Antônio, os três correndo pelo mercado local até que encontram uma loja de festas e em sua vitrine: fogos de artifício em promoção! Eles logo compraram vários deles, planejando assustar um grupo de garotos que os importunavam no colégio. Ao chegarem perto da casa de um deles, começaram a acender os fogos, eram dez ao total, e um a um eles subiam rapidamente estourando em inúmeras fagulhas estridentes e multicoloridas. Meu avô e seus amigos se revezaram na hora de acender os primeiros foguetes e uma vez que nunca tinham feito aquilo eles se empolgaram ao manusear o isqueiro perto do pavio dos ‘brinquedos’, vô e Marcos o faziam sem problema, mas Antônio… pobre garoto, ele parecia nervoso, de modo que demorou até ter coragem de acender seu primeiro foguete, que subiu sem problemas, até que os vizinhos começaram a se incomodar, gritando ameaças em meio ao barulho dos fogos, sendo esse o sinal para os três correrem para a rua de trás para lançar os últimos três foguetes. Durante a história, a mesa estava totalmente focada em meu avô, que às vezes parava para molhar a garganta com cerveja ou beliscar umas uvas. Eu o observava atentamente enquanto ele fazia seus movimentos erráticos e animados na hora em que, continuando a história, ele fingia acender o último foguete, posicionando o objeto imaginário em uma base sobre a mesa e o acendendo, ele contava animado sobre o instante em que alguns vizinhos apareceram e correram atrás deles, bem na hora em que os últimos explosivos lançaram voo iluminando a noite enquanto meu avô e Marcos corriam sem se darem conta de si mesmos, até que um estrondo os parou, assim como seus perseguidores. De forma que todos olharam para trás em direção ao som, tudo para avistarem Antônio gritando de dor com as mãos sobre os olhos, “Aquele Antônio era um danado! Depois daquele dia, ele sempre dizia ver os fogos de artifício para onde quer que olhasse, Ha ha ha”, ele então continuou comendo as uvas, sorridente e com um olhar distante, quase nostálgico, que guardava memórias que poucos presentes ali tinham acesso além dele. A mesa então um pouco atônita, levou algum tempo para recuperar o rumo, ao que algumas pessoas se distanciaram e outras iniciaram novas conversas, um climão bem típico de fim de festa estava imposto, até que o assunto geral recaiu nas histórias de natais passados de cada um, histórias essas que se perderam de minha mente, sendo trocadas pela imagem vívida que tenho de minha mãe. Dona de um rosto oval marcante, ela usava brincos de estrelas cadentes e um colar de pérolas azuladas que combinavam com seu vestido verde, todo costurado em padrões espiralados que percorriam a peça como ondas, que pareciam se quebrar contra o fundo translúcido de tecido da parte dos ombros e costas, ela era a própria maré. Sentada à minha frente, ela estava apoiada em sua mão com um olhar cansado, procurando algo que parecia não estar ao alcance daquele plano, ela enfim me olhou como que se tivesse desistido da busca, e assim ficou por alguns segundos, quando enfim me deu um meio sorriso desconcertado enquanto bebia um gole de sua taça de vinho. E era como se ela saboreasse todo o amargor dos anos vividos.
Parte II
O edifício era velho, mas isso não significava que ele era mal cuidado, muito pelo contrário. De pé direito alto e cores sóbrias, a construção era um exemplo clássico da arquitetura planejada para toda a cidade, antes das mudanças geradas pela imigração de pessoas que procuravam aqui na capital do país, uma vida melhor. Essa migração em massa de habitantes deu um novo rumo a capital, de modo que o romantismo foi trocado pela funcionalidade e velocidade de construção de novas moradias, é claro que com isso zonas de insalubridade foram geradas em decorrência de mal planejamento, além disso muitos problemas de acessibilidade são vistos até os dias de hoje, mas isso é conversa pra outra história.
Após aguardarmos na recepção, logo subimos para o sexto andar em um elevador que, contradizendo o que tinha visto até então, parecia estar caindo aos pedaços, “Não tenho nada contra elevadores, mas esse aqui seria perfeito para estrelar um daqueles filmes de objetos assassinos.” Dizia isso enquanto tocava em padrões de madeira lascada que lembravam dentes no lado contrário ao dos botões, “Já vim aqui outras vezes, se posso te dar uma dica, não encoste nas paredes que vai ficar tudo bem” ao ouvir isso afastei a mão lentamente enquanto Rebecca ria totalmente satisfeita com o efeito causado.
Com um click do elevador, enfim chegamos ao último andar, Rebecca foi na frente, e enquanto ela batia na porta pensei no mínimo em três formas diferentes de justificar minha presença ali, obviamente quando a porta se abriu eu não tinha chegado a nenhuma conclusão, de modo que achei uma grande salvação quando um dos amigos de Rebecca me pôs um gorro de natal na cabeça enquanto me cumprimentava dizendo “Feliz nataaaaal!! Eu sou o Pedro”. De feição amigável e parecendo um golden retriever, ele vestia um moletom com uma árvore costurada e era todo abraços, além dele fui apresentado a outros 3 amigos na entrada, Jéssica, uma mulher que aparentava ser a mãezona do grupo, Flávio que parecia já ter bebido todas e Raquel que parecia a menos falastrona dentre os outros, apesar disso ela me deu um sorriso contagiante dizendo “Você tem um cheiro engraçado de menta!” e logo em seguida apertou minha mão animadamente. Após essa generosa recepção, fui passando pelo apartamento e cumprimentando quem aparecia pelo caminho. O apartamento era espaçoso e bem mobiliado, e sob as baixas luzes, passava uma sensação labiríntica, ampliada pelas luzinhas natalinas que percorriam um dos corredores e um cheiro quase visível de blunt. Somado a isso tudo, na sala de estar um jazz suave vinha de caixas de som, acompanhando as conversas de pessoas jogadas em pufes e sofás, todos com alguma bebida na mão e um olhar moroso, próprio desses momentos noturnos. Sendo guiado por Rebecca que fazia uma rápida e enérgica descrição de cada um de seus amigos, eu me senti bombardeado por tanto contato social. Quando enfim chegamos à cozinha, respirando aliviado, evidentemente eu já não lembrava o nome das seis pessoas que tinha sido apresentado no caminho até ali, de modo que me foquei em lembrar de Pedro, Raquel, Flávio e Jéssica, para caso os reencontra-se.
“Fique a vontade, nunca vi faltar bebida em uma festa do Pedro, o que é engraçado porque ele mesmo não é de beber muito”, Rebecca estava procurando algo em um dos armários suspensos sobre a pia enquanto falava, me aproximei da geladeira e enquanto a abria falei “Sei, e você, costuma beber?” olhando dentro da geladeira descobri que dessa vez Rebecca não estava de brincadeira, contei duas dúzias de garrafas de cerveja: artesanais, puro malte ou frutadas, assim como algumas garrafas de vodka, que de pronto decidi passar longe, gin e vinho. Decidi pegar uma cerveja Lager comum quando Rebecca respondeu “Na verdade não, já fiz muita besteira por causa da bebida. Aprendi a apreciar outras coisas… aqui está!”, enquanto falava ela tirava do armário um pote que logo na sequência desenroscou, espetando dentro dele uma colher que direcionou a mim dizendo entusiasmada “Doce de Leite! E não qualquer doce de leite, esse aqui só pode ser escrito com letras iniciais maiusculas”, mal tinha acabado de falar, logo em seguida ela provou o doce com uma expressão digna de um comercial inegavelmente persuasivo. De lá seguimos para o corredor de modo que formávamos uma dupla inusitada: eu enquanto desconhecido geral me misturava ao ambiente, enquanto ela abria mão disso levando uma generosa colher de Doce de Leite pelo caminho. Passando por um quarto com a porta entreaberta, vimos nossos anfitriões sentados numa cama King jogando conversa fora, sem cerimônia Rebecca entrou, e sem pensar demais eu a acompanhei.
Sentado em roda sobre a cama, o assunto girava em torno de um outro amigo que não tinha conseguido aparecer, desaguando em um boato de que ele tinha ficado com a irmã de Pedro, “Eu não sei, ela não costuma falar sobre essas coisas comigo. Só sei que não dúvido do Guilherme, além disso faz um tempo que ele tem estado distante, é bem esquisito”, após ouvir mais algumas pequenas histórias que eram totalmente estranhas pra mim, Flávio deu a ideia de fazermos um jogo que basicamente consistia em fazer uma pergunta para a proxima pessoa da roda, de modo que se a pessoa tivesse feito aquilo ela precisaria beber um shot de vodka, a coisa continuaria até que a última pessoa tivesse feito uma pergunta pra cada um. A primeira pergunta foi feita para mim, “Felipe não é? Você já deu PT?”, a voz de Flávio era alta e tinha algo nele de agressivo e típico de alguém que aproveitaria qualquer oportunidade de ferrar com alguém, tentei não ligar muito para isso quando falei “Uma vez só, na festa de um amigo. Depois daquela noite aprendi a lição para toda a vida”, “Aaa então de nerd você só tem cara mesmo”, Flávio me olhava afrontoso, confirmando minha intuição, até receber um soquinho no ombro de Jéssica, que sussurrou algo num tom sério para ele, percebendo o silêncio que se seguiu eu bebi o primeiro shot da noite. A roda seguia essa ordem: eu, Pedro, Jéssica, Raquel, Rebecca e Flávio. Pensei um pouco com a mente um tanto nublada pelo forte gosto da bebida, até que perguntei “Pedro, já falaram que você parece um golden retriever?”, ele caiu na risada junto dos amigos, “Eu sabia que não era a única que pensava isso!” disse Raquel, “Eu não sabia que precisava tanto dessa montagem até cinco segundos atrás” completou Rebecca, Jéssica mantinha a compostura mas também se divertiu com o comentário que fiz, o único que parecia desconfortável adivinha só quem era? Ele mesmo, o cara de bunda do Flávio, Pedro disse após virar o shot “Qualé Felipe! Fazia tempo que não ouvia isso, mas agora acho que não vai ser mais uma raridade”, seu tom de brincadeira trouxe uma leveza pra roda que recebi com apreciação. A seguir, era ele a fazer a pergunta, direcionada a Jéssica, “Entãoo Jess, você já se dedicou pra alguém no colégio?”, uma série de gritos de animação explodiu ao meu redor, enquanto Jéssica cobriu o rosto com as mãos para logo em seguida apontar para Pedro de forma acusatória e espirituosa dizendo “Que jogo baixo seu enxerido, já te contei essa história tantas vezes! Ha ha”, “Mas nunca contou ela inteira pra gente!” disse Rebecca acompanhada de acenos de afirmação vindos de Raquel, “Basicamente ela curtia uma menina famosinha, se declarou e tomou um pé na bunda na frente de toda a escola” falou Flávio com uma voz ácida enquanto girava um copo de cerveja, “Pode deixar que eu mesma conto a história Flávio, obrigada”, o tom de Jéssica era controlado e conciliador, mas certeiro em inibir qualquer resposta que ele poderia vir a dar. Ela então virou o shot e arrumando a postura começou a contar:
Tudo se deu quando eu tinha 15 anos e no primeiro ano do ensino médio lá estava eu em uma nova escola, vivendo um período de minha vida em que tudo parecia estranho. Me lembro de chegar no início das aulas me sentindo um peixe fora d’água. Sempre fui uma garota mais alta se comparada às meninas que tinham a mesma idade que a minha, então era inevitável que eu chamasse atenção, em sua maioria de gente indesejada que procurava despejar sua própria amargura em qualquer um que parecesse ser alvo fácil. Estando num momento em que tinha um gosto especial por roupas escuras, jaquetas desgastadas, botas de couro, meias furadas e correntes, não demorou muito até me apelidarem de Drácula. Daí seguiu-se o roteiro de sempre: era a última a ser escolhida nas aulas de educação física, recebia esbarrões quando passava pelos corredores e era atingida por aviões de papel com mensagens maldosas durante a aula.
Sofri principalmente por causa de uma garota chamada Luísa, uma menina popular que desde sempre tinha sido mimada por pais ricos e uma moça que sempre a buscava na escola, provavelmente uma empregada da família. Sua arrogância durante as aulas era tão grande que a mera ideia de que ela alguma vez tivesse lavado louça ou arrumado a própria cama me soava ridícula. Sendo nós duas alunas que se destacavam, era questão de tempo até eu virar alguém por quem era iria dedicar sua energia e implicâncias mais sofisticadas, ainda mais depois de eu ter deixado bem claro que não ia com a cara dela depois de a confrontar quando a vi humilhar um garoto que tinha pedido licença para passar pelo caminho que ela interditou com seu grupo de seguidores, nesse dia eu ganhei uma inimiga declarada, uma onda de xingamentos e um amigo querido que depois me apresentaria para pessoas que me ajudariam a sobreviver àqueles anos de cão.
Sei que estou saindo da história principal, mas preciso dar um contexto sobre o que vai acontecer a seguir, sendo assim, teve um dia onde a rixa entre mim e a Luísa aumentou de nível. Tudo começou com a notícia de que nossa escola faria uma olimpíada de matemática, de modo que muitos estudantes começaram a se preparar para a competição que teria como premiação um notebook, coisa que atraiu muita atenção e fez com que o bullying contra mim diminuísse de intensidade. Passei duas semanas onde tudo que recebia eram olhares duros e provocativos vindos de Luísa, sempre que nos encarávamos na escola, não que eu ligasse, estava experimentando uma paz que não conhecia e já tinha um grupo próximo de amigos formado por: quatro meninas e dois garotos, todos unidos por alguma gama de elementos que os tornavam esquisitos para os alunos mais padrõezinhos da escola, de forma que entre nós éramos quase como família quando se tratava de proteger uns aos outros ou jogar conversa fora.
Apesar da trégua, eu tinha outras coisas com que me preocupar: os estudos para a olimpíada, que me ocupavam durante a tarde toda. Eu estudava a ponto de sentir dor nas mãos de tanto escrever e em poucos dias já sonhava com números e equações, isso quando conseguia dormir. Apesar disso, eu não reclamava porque queria ganhar aquela competição de qualquer jeito, e o fato de ter certa facilidade com a matéria me servia de motivação nos dias mais complicados.
Passadas as duas semanas, finalmente chegou o dia da prova, que foi feita no auditório da escola, único lugar onde os mais de 100 alunos participantes poderiam ser colocados de forma minimamente organizada. Eu cheguei cedo e fiquei nas primeiras fileiras, não vendo Luísa fiquei mais tranquila, usando o tempo antes do começo da prova para desejar boa sorte para alguns conhecidos que também estavam participando, lembro de me sentir bastante leve naqueles minutos pré-avaliação tendo consciência de que eu tinha dado o meu melhor até aquele dia. Quando recebi a prova, foi estranha a sensação que senti, era como se eu fosse uma máquina programada, de modo que ia respondendo questão atrás de questão, interpretando curvas de probabilidade, resolvendo equações trigonométricas e problemas de lógica, quando me dei por mim eu tinha acabado a avaliação, tendo como última memória daquele dia a visão de Luísa quando eu estava de saída. Ela estava sentada bem longe de onde eu tinha ficado, com a mão apoiada na testa muito concentrada enquanto encarava a prova.
Demorou uma semana até que o resultado saísse e durante aquele tempo a atmosfera da escola estava em suspensão, período no qual aproveitei para comparar as minhas respostas com alguns colegas, graças a isso vivi o fim de semana anterior a premiação bastante confiante de meu desempenho. Mesmo assim foi grande a surpresa e maior ainda a minha animação quando recebi a notícia da professora de que eu tinha sido a aluna com a maior nota da olimpíada! Recebendo a medalha e o notebook, pude ver Luísa no canto de minha visão indo para fora do ginásio, mas eu não estava nem aí, focada em rir e pular de alegria com meus amigos celebrando aquela vitória. Infelizmente, toda aquela festa durou pouco.
Um dia depois tudo estava correndo normalmente, até a hora do intervalo, quando comecei a perceber olhares tortos e cochichos direcionados a mim. Conversando com meus amigos, descobrimos que alguém tinha espalhado o boato de que eu havia colado na prova, e era por isso que eu tinha ganhado a olimpíada. No final da manhã tive a certeza de que a breve maré de positividade se quebrava quando, na saída da aula, tomei um susto enquanto garrafas de água gelada eram esvaziadas sobre minha cabeça, com é claro, Luísa gritando ao fundo “Só assim pra você aprender a ser menos suja! Sua vampira nojenta.” provavelmente pelo choque da situação não lembro do instante exato em que cai no chão, sabendo apenas que depois daquilo tudo, meus amigos me acompanharam até em casa, alguns quase tão molhados quanto eu. Apesar disso, nenhum deles presenciou o momento em que abri minha mochila sobre a cama e senti um cheiro de alho podre tomar conta do quarto todo.
Depois daquele ocorrido, percebi que não dava mais para as coisas continuarem como estavam, de modo que planejei minha vingança na noite de Halloween, durante uma festa da escola que se aproximava. Na semana anterior a ela, tomei a iniciativa de pegar o apelido que tanto me infernizou e usar contra meus agressores. De forma que me senti incrível em minha fantasia após finalmente ter encontrado a capa, o corset e as luvas perfeitas. Chegada a noite da festa, passei algumas horas preparando meu cabelo com laquê e deixando minha feição branca como a neve, sem esquecer das sombras pesadas sobre os olhos, o delineador e um batom cor de vinho sangue.
Me encontrei com meus amigos na festa e foi divertido ver o empenho de cada um em suas fantasias: tínhamos um casal frankenstein: a cientista e o monstro, uma zombie, um lobisomem, uma carrie, a estranha e uma diabinha. Durante a festa, dançamos e rimos bastante enquanto tomávamos bebidas que tinham cor de ácido sulfúrico e sangue, até que vimos o grupo de Luísa entrando no ginásio, nós a ignoramos, mas ela não podia deixar de vir falar algo sobre minha fantasia “Olha só se não é o drácula em pessoa, você não cansa de passar vergonha não?”, não falei nada. Apenas tirei dois frascos de ketchup de minha capa e num movimento rápido transformei a fantasia de enfermeira dela, em uma versão um pouco mais sanguinária. Ela já saia indignada quando falei “Acho melhor pensar melhor da próxima vez em que for mexer com essa vampira aqui” em meio a várzea dos estudantes que presenciaram a cena.
Depois daquela noite sem igual, um acordo de paz foi estabelecido, e por dois meses pude viver minha vida sem me preocupar com ela. Agora enfim, chegamos a história que vocês tanto queriam ouvir: minha declaração pra uma garota popular da escola. Já no fim do ano, eu conhecia ao menos de vista a maioria dos alunos e para além do meu grupinho, eu conversava em especial com alguns que faziam parte da pequena exceção de alunos que eram gente boa. Entre eles havia uma garota que me chamou bastante a atenção, ela se chamava Luana, e apesar de não ser a mais popular da escola, ela era bem conhecida, principalmente por ser ótima no teatro e bem comunicativa. Ainda lembro de quando vi ela como protagonista numa dessas peças românticas que por mais antiquadas que fossem, pareciam perfeitas para ela, que interpretava cada fala com raiva, dúvida ou paixão tão verdadeiras, que me faziam questionar se ainda se tratava só de atuação. Eu passei a ter uma queda por ela, bem coisa de adolescente mesmo, mas era forte o suficiente para me fazer escrever um bilhete a convidando para sair.
E foi aí que as coisas se complicaram: eu não sabia como ou quando entregar o bilhete. Isso porque ela era um ano mais velha que eu, logo, não tínhamos contato, a não ser na hora do intervalo, momento em que trocamos pouquíssimas palavras sobre amenidades: fofocas sobre professores, breves comentários que eu fazia sobre as apresentações dela ou raras ocasiões em que ela me procurava para pedir dicas sobre como estudar melhor algum conteúdo de matemática e física, sendo assim o intervalo não era lá minha primeira opção. Mas nada é perfeito nessa vida não é mesmo, de forma que nem entrava como opção entregar o bilhete para ela na saída, isso porque eu estudava de manhã enquanto ela ficava lá o dia todo, de um jeito que nossos horários nunca batiam. Enfim, a única alternativa que eu via era entregar o bilhete para ela durante o intervalo, e assim eu decidi fazer em uma terça-feira qualquer, ou assim eu pensava, não tendo noção de como estava prestes a reacender uma inimizade que até então tinha estado inerte já a algum tempo.
Eu estava nervosa quando avistei Luana em uma das mesas do refeitório rodeada por amigas, ela conversava animadamente enquanto eu pensava na melhor forma de me aproximar, coisa que preferi fazer sozinha, tendo dito pros meus amigos que não era nada demais, que eu só tinha que entregar uma atividade que tínhamos feito juntas. Respirei fundo e fui andando em direção a ela, e com o bilhete na mão, mal tinha notado quando passei por Luísa, a ignorando terminantemente. “Olha só isso, além de nojenta é mal educada, pra onde vai com tanta pressa?” Percebendo que ela olhava para minha mão fechada dei alguns passos para trás dizendo “Lugar nenhum! E poxa vida, você não consegue me esquecer mesmo né”, irritada ela me empurrou no chão, e no meio da confusão de mãos tentando me segurar ou me levantar, senti o papel se desprendendo da minha, enquanto a riquinha olhava com um tom de deboche e fingia ler o bilhete “Olha só! Quer dizer que a vampira está APAIXONADA pela Luana?!” ela gritava para todo o refeitório ouvir enquanto apontava para Luana, que de onde eu estava, parecia estar confusa e chateada com toda a situação. Quando me levantei fiquei paralisada de vergonha enquanto a via saindo do refeitório em meio ao escarcéu generalizado, naquele instante os ataques de Luísa já não faziam mais efeito sobre mim. Apenas um único pensamento me assombrava para além de toda aquela humilhação e zombaria: a certeza de que eu tinha sido completamente rejeitada.
O restante daquela semana passei anestesiada, evitando ao máximo me esbarrar com Luana, temendo confirmar a ideia de que ela estava muito chateada comigo por a ter envolvido naquela guerra pessoal que para mim estava terminada. Relembrando aqueles dias, percebo que devo muito a meus amigos que foram compreensivos mesmo depois de eu ter mantido tudo aquilo para mim, de modo que eles me deram apoio e muitos abraços de consolação, um remédio temporário mas efetivo o suficiente para me fazer aguentar até a sexta-feira. Passada aquela semana deprimente, estávamos no começo de dezembro, período que sempre gostei, de modo que meu ânimo foi se recuperando aos poucos. Estando na última segunda-feira de aula do ano, lá estava eu conversando com meus amigos em um intervalo sobre as decorações que planejávamos fazer para a comemoração de natal quando meu coração foi para o estômago quando a vi se aproximando, ela mesmo, Luana.
Meus amigos notando minha expressão de choque temiam o pior, mas ao verem de quem se tratava todos se acalmaram um pouco, ao que ela se aproximou dizendo “Posso falar com você um momento Jéssica?”, seu olhar era calmo e seu tom de voz me lembrava de quando ela estava no palco, nas cenas em que uma conversa importante estava prestes a começar, “É claro que sim”. Nos afastando do grupo e procuramos um lugar mais tranquilo para que pudéssemos conversar, chegando enfim em um banco posicionado bem longe do refeitório, de frente para um portão gradeado que dava visão para o movimento habitual da rua, ali perto uma caixa de som do pátio tocava melodias natalinas, e o ar carregava um cheiro de chuva ainda por vir. Estando ali sentada ao lado de Luana fiquei tensa quando ela deu um longo suspiro antes de começar a falar ”Eu sinto muito pelo que você passou semana passada. Depois daquele dia te procurei, mas não te achava em lugar algum” a medida que ela ia falando, minha ansiedade foi se derretendo como um grande cubo de gelo, “Quando a Luísa disse aquilo eu entrei em choque e tudo que consegui fazer foi sair sem falar nada.”, ouvindo isso não se segurei eu disse “Olha Luana, aquilo que ela gritou pra todo mundo não era o que estava escrito no bilhete, na verdade eu estava te convidando para um encontro”, ela me deu um sorriso um tanto tímido e olhando no fundo dos meus olhos perguntou “Porque você não me disse isso pessoalmente?”, engoli em seco antes de eu dizer “Eu estava com medo”, após isso um silêncio passou a existir entre nós enquanto ela procurava as palavras certas para me dizer, “E eu ainda tenho medo, apesar disso eu adoraria sair com você”. Passado um tempo, ela se apoiou em meu ombro e ficamos ali juntas e contentes, certas de que nada poderia estragar aquele momento.
Alguns dias depois tivemos nosso primeiro encontro, em uma cafeteria tomamos chocolate quente e trocamos presentes, cartas e desenhos, ela me deu um postal com um desenho quase infantil de uma vampirinha e eu escrevi à mão uma passagem que adorava de uma das peças em que ela atuará. Ainda naquele dia conversamos sobre muitas coisas e escutamos músicas de natal que em outra ocasião pareceriam a coisa mais brega do mundo, mas que naquele momento transmitiam grande magia. E juntas vivemos o outro ano, o último dela na escola. Nos encontrávamos sempre nos fins de semana ou faltávamos alguma aula de geografia para nos vermos, sempre longe dos olhos alheios, pois ela ainda não tinha se assumido para a família e temia que nosso relacionamento vazasse caso ficássemos juntas demais na escola. Quando saíamos, nossos pontos preferidos eram um cinema local, onde na primeira vez pedimos uma bebida que veio errada! Era pra ser só de laranja, mas algum problema fez com que experimentássemos uma mistura esquisita com limão, que acabou virando nossa favorita. Também visitávamos museus e eu a acompanhava em audições para peças em grupos de teatro semi profissionais. Também tínhamos um ponto secreto de onde podíamos ver toda a cidade, em um morro gramado sobre uma colina afastada de tudo. Lugar onde uma vez acendemos fogos de artifício. Eu ainda lembro quando as luzes brilhantes e multicoloridas iluminaram o céu profundo e estrelado, e lembro melhor ainda da expressão de pura alegria da Lua quando a pedi em namoro oficialmente naquela mesma noite. Enfim, nós nos divertimos muito juntas, e isso é tudo que posso dizer sem entrar em detalhes que guardo apenas pra mim ha ha ha.
A roda deu uma salva de palmas animadas enquanto Jéssica bebia outro shot. “Cara você nunca tinha me contado toda a história!“ disse Pedro gesticulando animadamente com as mãos, “Pois é! Na minha época tudo que eu sabia era que a vampira do primeiro ano tinha sido rejeitada. Fico muito feliz por ter sido tão bem enganada!” disse Rebecca rindo, “Peraí, você era da mesma escola que ela?” perguntei um tanto surpreso, “Sim, mas eu era novinha nessa época, estava no sexto ano. A Jéssica podia não se achar muito famosa, mas para a gente ela era muito legal! Graças a ela, os valentões foram diminuindo de quantidade, uma vez que a gente foi aprendendo como lidar com eles, inspirados pelas coisas que ela fez com aquela riquinha desmiolada.”, “E o que aconteceu quando a Luana saiu da escola?” perguntou Raquel atraindo a curiosidade de todo o grupo, até a de Flávio, que estava escorado na cabeceira da cama, ele sustentava um olhar soturno à Rebecca e depois tive a impressão de que ele olhava para mim antes de se direcionar à Jéssica quando ela se pôs a falar “A sabe como é, ela teve que mudar de cidade por conta da faculdade, eu morava em uma cidade pequena antes de vir para cá, de modo que nossos caminhos se separaram. Quando percebemos que não íamos mais conseguir nos ver nos separamos antes que a dor da inconstância arruinasse os bons momentos que tínhamos vivido juntas até ali.”, terminando de falar ela olhava para seu copo o girando lentamente, e em sua face eu percebia uma pontada de tristeza misturada com uma nostalgia de tempos mais simples, em que as responsabilidades e projetos de vida não eram mais do que sombras que nos observavam à distância. Pedro devia perceber que o clima estava esfriando quando batendo uma palma animado ele disse “Certo! Acho que tá na hora da gente tirar fotos à fantasia” em seguida ele se levantou e após uma boa espreguiçada foi até uma porta de correr, que ao ser aberta, revelou um closet cheio de trajes de todo tipo, capas fluorescentes e com bordados requintados, vestidos requintados, chapéus pontudos, óculos de coração e com lentes coloridas, colares de miçanga e pérolas, braceletes de corrente e seda, gorros de natal e bastões luminosos, tudo espalhado em estantes, cabides e gavetas que pareciam não ter fim. Diante da descoberta do tesouro todos se aproximaram para provar as peças animadamente, nesse momento Flávio saiu silenciosamente do quarto, ao que eu dei de ombros e me reuni com o restante do pessoal.
Me senti na história de Jéssica, no momento em que nós assim como seus amigos do colégio, estávamos todos muito bem vestidos em nossas fantasias: Raquel era uma fada, e usando um vestido em tons de azul, ela brilhava e sua pele escura reluzia em meio as luzinhas de natal, acompanhada pela vestimenta e adereços de prata que tremeluziam como ondas. Pedro era um duende natalino, usando orelhas pontudas, ela falava de um jeito engraçado enquanto exibia seu jaleco vermelho e sapateava com botas gigantes que acendiam luzinhas a cada passo, ele estava totalmente hilário. Jéssica nos deu um gostinho de sua persona vampiresca, com um sobretudo de corte fino e uma gravata borboleta vermelho sangue. Por fim, Rebecca vestiu roupas que num primeiro olhar lembravam algo saído de uma gangue de motoqueiros. Mas essa imagem se desmontou quando ela pôs um gorro de natal e percebi que ela usava meias listradas em vermelho e branco sob as botas com espinhos, também notei que da jaqueta de couro pendia um simpático rosto sorridente do bom velhinho, e por fim quando observei seu rosto, notei os brincos de bolinhas coloridas de árvores de natal e as pequenas estrelas feitas em lápis em suas bochechas, ela estava linda.
Entrando na brincadeira eu fui atrás de peças chamativas. Após uma pesquisa de campo bastante exigente, escolhi uma calça particularmente reflexiva em tom de cobre e um casaco de penas verdes falsas. Nesse ponto minha busca pela fantasia perfeita estava bem encaminhada, até que eu decidi pegar todos os adereços luminosos que encontrasse, luvas, colares, e um óculos em formato de estrela. Quando percebi que eu estava parecendo uma árvore de natal, chutei o balde e me enrolei em uma corda de pisca-piscas a bateria.
Na hora das fotos, fomos para a varanda que ficava de frente para um espaço amplo e arborizado, no qual pude notar um espelho d’água bastante bonito em uma praça ali perto. Todos nos posicionamos por ali, e enquanto Pedro buscava a câmera me aproximei de Rebecca e disse “Você tá planejando lançar um novo festival de rock no natal ou eu to ficando maluco?” ”Ta tão na cara assim??? Mas agora que falou, bem que eu vou precisar de alguém para lidar com os efeitos de luzes no palco…”, “É mesmo? Curte só o que eu sei fazer” e fiz uma série de movimentos com os braços para cima segurando os óculos de estrela e depois rodando enquanto os pisca-piscas se acendiam e apagavam freneticamente, ela despontou a rir quando fiz uma pose super confiante fingindo que nada tinha acontecido logo após me desequilibrar e quase cair. Não demorou até que Pedro retornasse com uma câmera analógica em um tripé, a ativando e rapidamente correndo para a varanda a tempo de se reunir a todos nós, todos posando para a foto de tudo quanto era jeito, depois planejamos poses em conjunto, fazendo corações com as duas mãos, em um abraço geral e por fim com a língua de fora e o símbolo universal do rock, qual não foi meu susto quando ao revermos as fotos avistei um gatinho preto junto ao pé de Pedro na foto do abraço, “Aaa, essa é a Jiji! Ela gosta de ficar andando pela casa, mas não perde uma foto” disse Raquel animadamente enquanto ia atrás da gatinha, voltando com ela aninhada em seus braços, Jiji parecia um brinquedo de olhos fechados enquanto era afagada na barriga, dando um sorriso sem graça me aproximei e fiz carinho na bichinha que jurava ser uma assombração.
Após um tempo, o pessoal se dividiu, de modo que fiquei a sós com Rebecca no quarto. Já passava da meia noite e a gatinha Jiji a essa hora dormia enrolada no casaco de penas verdes que eu jurava ter colocado num cabide no closet, quando todos guardaram suas roupas e eu curiosamente tinha achado numa gaveta alguns fogos de artifício silenciosos jogados de qualquer jeito. “Seus amigos são bem legais Rebecca, obrigado por ter me chamado para a festa, do contrário estaria em casa contando apenas com a companhia do Listrado, que é um ótimo amigo, mas não do tipo falador se é que você me entende”, estávamos sentados na cama de frente para a varanda, uma suave brisa entrava no quarto e o tempo parecia se arrastar preguiçosamente, Rebecca balançava os pés suavemente quando disse “Não precisa agradecer, te achei galhardo e pensei que o pessoal iria gostar de te conhecer, simples assim. Listrado é o seu …” ela deixou as palavras se arrastarem ao que eu respondi pondo a mão atrás da cabeça e dando um sorriso engraçado “A sim, é o meu calango de estimação” ela me encarou como se esperasse o fim de alguma piada quando complementei “Quando eu era pequeno uma vez um calango apareceu machucado dentro de casa, ele estava com uma patinha a menos, o que o fazia ter dificuldade de andar. Morrendo de dó eu o peguei com um copo de vidro e uma folha de papel e corri para pedir ajuda a minha mãe. Ela trabalhava no momento, editando documentos, ela era corretora de imóveis. Parado ao lado de seu computador, lá estava eu, com lágrimas nos olhos e mãos trêmulas com medo de derrubar o bichinho, de modo que ela o pegou dizendo que faria o possível para cuidar dele. Acontece que esses calangos só conseguem regenerar suas caudas, de modo que esse acabou não resistindo.” me levantei e fui para a varanda, tentando conter a torrente de memórias que invadiam minha mente naquele instante, Rebecca se aproximou e disse “Não precisa continuar se não quiser Felipe”, respondi com a voz um tanto embargada “Não tem problema. Alguns anos se passaram e eu encontrei o Listrado quando estava saindo da minha casa atual, logo que me mudei, ele estava sem parte da cauda, de modo que o levei para dentro até que ele se regenerasse, enquanto isso eu o alimentava com pedaços de frutas. Passadas três semanas sua cauda estava novinha em folha de modo que o deixei no parapeito da janela, e qual não foi minha surpresa quando vi que após algumas horas o danado tinha voltado ha ha ha. Desde então ele está lá, sempre comigo”, após um breve silêncio perguntei “A propósito o que é galhardo?” “Amanhã eu te conto” ela disse fazendo um V de vitória enquanto dava um sorriso brincalhão de olhos fechados, ri um pouco, notando como gostava do jeito com que ela lidava com as coisas. Falar com ela era como pisar em areia molhada, estável o bastante para transmitir segurança mas sempre imprevisível em seus caminhos. Enfim eu disse “Vou na cozinha pegar mais uma bebida, aceita alguma coisa?”, “Só um copo de água já está de bom tamanho, senhor árvore de natal”, acendi a luz dos óculos de estrela e acenei animadamente enquanto saia do quarto. Passando pela casa, vi que algumas pessoas já tinham ido embora, ainda assim, havia uns oito convidados espalhados pelo ambiente, contando com Flávio que me viu enquanto eu passava pelo corredor. Eu segurava dois copos, um com cerveja e outro com água, quando já de saída da cozinha me deparei com Flávio apoiado no vão da porta, sua figura alta e forte ampliada pelo ar alterado que ele transmitia pelo cheiro forte de álcool exalava. “Você é muito espertinho mesmo, mal chegou e já quer sentar na janela” sua voz era arrastada e ele olhava irritado para mim, “Olha, Flávio não é? Eu sinto muito por qualquer coisa, mas preciso passar”, “O queee, não me diga que a Becca está te esperando? Logo um nerd idiota como você”, ele pontuava cada palavra enquanto se aproximava cambaleando de mim ao mesmo tempo em me afastava para a outra ponta da cozinha, dizendo ”E o que você tem haver com isso?”, “Seu merdinha!” ele gritou quando num empurrão torto tentou me derrubar, me fazendo bater num armário causando um estalido de vidro se partindo e talheres se chocando. Por sorte, saí ileso, apenas com uma leve dor nas costas, sem sinal de sangue e só alguns respingos de cerveja e água na minha roupa. Mas o armário não teve a mesma sorte que eu, notei que a pequena placa de vidro da porta estava bem rachada, com alguns objetos derrubados no seu interior. Graças ao grito de Flávio, a atenção da festa, àquela hora bastante dispersa e morosa, foi toda levada para onde estávamos, com Pedro e um outro rapaz chegando rapidamente para intervir na situação. “Relaxa Flávio, vem aqui” dizia o rapaz de regata e pele bronzeada de forma conciliadora passando pelos convidados que tinham se aproximado para ver o que estava acontecendo, já do lado de fora da cozinha Pedro foi atrás dele após me dirigir um olhar como quem pedia desculpas. Seguindo para o corredor vi Jéssica, Raquel e Rebecca todas com expressões que iam do desapontamento a preocupação, “Acho que está na hora de eu ir nessa” disse um tanto envergonhado pela cena, “Eu te acompanho” disse Rebecca.
Me despedi das meninas com abraços e felicitações, “Vai desculpando a confusão, prometo que não é sempre assim” disse Jéssica com um sorriso sincero. Quando passei por Raquel ela disse “Foi bom te conhecer, vê se não some, garoto de menta” me dando um abraço generoso. Eu não sabia bem o que dizer para elas, ao que acenei e agradeci pela companhia e boas risadas, “Mandem um abraço pro Pedro por mim”. Depois disso, saí junto de Rebecca e mantivemos o silêncio vivo até nos vermos sob a luz das estrelas e da lua cheia, que àquela hora se mostrava longe das nuvens cinzentas. Continuamos andando sem direção e acabamos por chegar no espelho d’água, ao que nós sentamos de pernas cruzadas em sua borda, ali eu observava os peixes nadando ao redor do reflexo tremeluzente da lua e naquele instante de calmaria me lembrei da maré. “É engraçado como somos mais afetados pelas coisas que dão errado, né?” disse enquanto traçava espirais na superfície da água. Sentados lado a lado eu podia ver Rebecca olhando para o alto pelo canto dos olhos “Somos criaturas simples e medrosas, pouco importa se fugimos ou nos defendemos, fomos feitos de um jeito que sempre procuramos por ameaças”, pensei um pouco naquelas palavras antes de perguntar “Aconteceu algo entre você e o Flávio?”, ela pareceu hesitar por um instante, agora de olho nos peixes que notavam enfim nossa presença ali, quando disse “Na verdade não, teve um tempo em que ele foi afim de mim, mas logo disse que eu não tinha interesse. Hoje percebo que ele não sabe diferenciar coisas que não cabem a ele de reais ameaças” sua voz não transmitia raiva, era mais como se ela declamasse algo que já soubesse em seu âmago. Olhando para ela eu disse tentando levar as ondas daquela conversa para outro lugar “Eu achei isso no closet do Pedro, será que ele vai ficar chateado se a gente usar?”, tirando do bolso os fogos de artifício, Rebecca pôs a cabeça de lado enquanto pensava a respeito, após um silêncio reflexivo um sorriso escapou do canto de sua boca quando ela respondeu “Nah, acho que não tem problema. Caso ele reclame posso chantagear ele falando que vou espalhar a fama de golden retriever aos quatro ventos”, eu sentia a melancolia me abandonar a cada risada que demos juntos. Reunindo alguns gravetos secos, montamos uma base longe do espelho d’água, de modo a não incomodar as carpas e logo em seguida Rebecca usou seu isqueiro para acender o primeiro foguete, quando vimos o pavio brilhante e o cheiro de pólvora queimada corremos para longe e já a uma boa distância, nos viramos a tempo de ver as luzes silenciosas cruzarem o céu, lembrando cometas ascendentes ao se expandiram em feixes vermelhos alaranjados. Fizemos isso mais algumas vezes, sempre observando em expectativa quais cores seriam reveladas sobre nossos olhos que viam tudo, do verde, passando para o violeta e o azul celeste. Quando enfim acendemos o último dos foguetes, sua cor era igual à do primeiro. De mãos dadas com Rebecca corremos para perto do espelho, eu sentia que lá, de alguma forma pudéssemos fazer a visão durar mais. E no breve momento entre a decolagem e a explosão, eu sentia uma corrente elétrica percorrer todo meu corpo, ampliando a sensação de esforço muscular que eu tinha feito, até finalmente avistar os fios vermelho alaranjados formando grande círculo e sua réplica perfeita e inversa que como uma segunda lua, afundava na água, as luzes primeiro brilhando em grande energia para logo em seguida se desfazerem, desaparecendo faísca a faísca, como se encerrassem enfim aquele feitiço que era só nosso.
Durante todo aquele tênue momento eu senti como se o próprio tempo parasse para respirar, enquanto seguia com meus olhos do espelho d’água, para os peixes, para a lua novamente solitária e então para o rosto de Rebecca, gravando em minha mente sua expressão contemplativa pontuada por constelações em suas bochechas, sua turva representação existindo ali, na superfície do espelho. Me virei então para ela, agora sua versão material, e vi sua real definição, o contorno de seus lábios e o leve movimento de seus cabelos, enfim notando os seus olhos nos meus, não mais olhos que encaram um reflexo, mas olhos que como poços fundos e escuros me convidavam a dar um mergulho, a me deixar levar pela maré tranquila e embriagante. Me aproximei de seus lábios e nesse encontro sedento de contato e eletricidade, senti algo difícil de descrever, como se o mundo se desfizesse ali mesmo em areia e mar, enquanto tudo em minha mente era uma colagem de luzes multifacetadas que moldavam uma alegria estranha, quase mística. Ficamos assim por um tempo além da conta, abraçados e apenas existindo sob a luz das estrelas e dos pisca-piscas de natal ao longe. Submergido nesse fluxo, não sei quando, mas em algum instante senti como se chegasse em uma ilha e foi nela em que cheguei a conclusão de que talvez era disso que se tratava aquele bilhete inusitado que encontrei na casquinha de sorvete de menta vendida pelo velho tatuado e misterioso na praça estadual, antes de ir para um show de metal natalino em um bar que conhecia.